Friday, July 15, 2011







Traduzir poesia é como recompor

Pedro J. Bondaczuk

A cidade de Campinas, que neste 14 de julho de 2011 (ontem) completou 237 anos de fundação, tem consolidada tradição cultural, notadamente artística, e envolvendo todas as artes, como música, pintura, escultura, literatura etc. Essa característica vem de longe, praticamente do seu surgimento neste Planalto Paulista (ou quase). Nela nasceram, também, notáveis escritores, além de outros tantos terem-na eleg ido como lugar ideal para viver, trabalhar, produzir, criar etc. É uma cidade não apenas acolhedora, mas inspiradora.

Entre os mais notáveis homens e mulheres de letras campineiros, todavia, destaca-se (e sem nenhum demérito aos demais) a figura majestosa, imponente e venerável de Guilherme de Almeida Tratei, dia desses, desse prolífico poeta, reproduzindo trechos de preleção que fiz sobre ele na Academia Campinense de Letras. Peço licença, agora, para voltar ao assunto – o que julgo para lá de oportuno por ocasião deste aniversário da cidade. Desta vez, no entanto, tratarei de outra faceta de Guilherme de Almeida – tão importante quanto a de escritor, de poeta – que é a de tradutor.

Traduzir qualquer obra literária de um idioma para outro é tarefa titânica, muito mais complexa do que possa parecer à primeira vista, em especial aos mais desavisados, não afeitos a esse exercício. Não basta a quem se proponha a realizar a tarefa que conheça a fundo as duas línguas com as quais terá que lidar, embora isso seja o mínimo que se espere dele. É desejável que seja, também, escritor, capaz, portanto, de detectar, captar e transcrever algumas (na verdade todas) nuances que normalmente escapam ao olhar desatento do leigo.

Se traduzir um romance, um conto, uma novela ou mesmo um ensaio já se constitui numa façanha, em magnífica empreitada, imaginem a complexidade, (que se multiplica por um milhão) na tradução de poemas. A linguagem poética tem características próprias, peculiares, muito diferentes das formas de expressão usuais. As palavras têm um peso diferente, muito maior, e cada uma delas, cada qual em seu idioma. Um equívoco, por mínimo (ou ínfimo) que seja, na versão de qualquer delas, não raro arruína todo o poema. E essa tradução “arruinada” às vezes finda, até, por expressar exatamente o oposto do que o autor expressou.

Defendo, pois, que para traduzir poesia não há ninguém mais habilitado, e qualificado, do que um poeta. E os nossos mais consagrados – Manuel Bandeira, Mário Quintana e Carlos Drummond de Andrade, apenas para citar os de maior renome – foram, também, exímios tradutores, assim como foi José Paulo Paes. Todos eles, porém, não se limitaram a verter as palavras do idioma original para o português. Daí o valor dos seus trabalhos. Virtualmente “recompuseram” os poemas traduzidos, como se os estivessem compondo, mantendo, todavia, rigorosamente intacto o sentido, o espírito da composição original, a emoção de um momento, posto que em outros termos, de outra língua.

Guilherme de Almeida foi primoroso tradutor, notadamente das obras de poetas franceses (mas não só delas). Todo esse falatório deste editor tomado pela emoção, por esta data tão relevante para a cidade que há 51 anos o adotou, é para registrar o lançamento (eu diria, relançamento) de uma obra imperdível aos amantes da boa poesia. Refiro-me ao livro “Poetas de França”, cujo lançamento original ocorreu em 1936, e que acaba de ser relançado pela Babel Editora. São 224 páginas preciosas, “ouro puro”, com seleção e tradução de Guilherme de Almeida de poemas escolhidos a dedo de 31 dos mais notáveis e inspirados poetas franceses.

Lá estão versos imortais de clássicos como François Villon (o “poeta-bandido” medieval, mas gênio na arte de poetar), de Paul Valéry, Stéphane Mallarmé, Paul Verlaine, Pierre Charles Baudelaire e tantos outros, que ao longo dos anos, atravessando gerações, fizeram, e fazem a delícia dos amantes da poesia. Reitero a característica peculiar desse tradutor de mão cheia. Virtualmente, Guilherme de Almeida “recompôs”, um a um, cada poema incluído no livro. E, para que não pairassem dúvidas a propósito, a edição é bilíngüe, com a publicação de poemas em francês, de um lado, e a correspondente tradução para o português do outro.

Trata-se, pois, de coletânea que, reitero, cada página é “ouro puro” e de 24 quilates, Mais do que mero livro, é uma preciosidade bibliográfica, obrigatória para constar na estante de todo leitor culto, sensível e, sobretudo, de bom gosto. Não vou, todavia, privá-los de pelo menos fazerem uma ligeira “degustação” desse banquete de sensibilidade, que é a coletânea “Poetas de França” na tradução (e reitero, “recomposição”) magnífica de Guilherme de Almeida. Selecionei a esmo (porquanto o livro tem unidade qualitativa absolutamente impecável) o poema abaixo, de Pierre Charles Baudelaire, para o seu deleite (e o meu também, não tenham dúvidas).

O gosto do nada

Pierre Charles Baudelaire

“Morno espírito, antigamente afeito à luta,
a Esperança que te esporeava outrora o ardor,
não te cavalga mais! Deita-se sem pudor,
cavalo que tropeça em tudo e em vão reluta.

Dorme, ó meu coração; desiste, ó massa bruta!

Espírito vencido, em ti, velho impostor,
já não tem gosto o amor, nem o tem a disputa;
não mais a voz do cobre ou da flauta se escuta!
Deixa esta alma sombria, o Prazer tentador!

Perdeu a Primavera o seu cheiro de flor.

E o tempo me devora em marcha resoluta,
como a ampla neve um corpo rijo de torpor;
contemplo do alto o globo túmido e incolor;
e nele nem procuro o abrigo de uma gruta!
Vais levar-me, avalancha, em tua queda abrupta?”.



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