Ainda a memória
Pedro J. Bondaczuk
A memória, conforme afirmei em texto recente, costuma nos pregar peças incríveis. Fatos de que nos “lembramos” ter ocorrido de determinada maneira, ocorreram na verdade de outra, com inúmeros detalhes esquecidos e outros tantos acrescentados por nossa própria conta, pela imaginação e, portanto, diferentes dos realmente acontecidos. E não é só isso. Em determinados momentos em que ela não poderia nos falhar, falha. E nos causa, na melhor das hipóteses, alguns constrangimentos, logicamente desagradáveis que, na verdade, são bastante chatos.
E nem é necessária a presença de alguma patologia para que a memória nos dê mancada. Lúcidos e sadios, passamos por essa frustração. Há alguns anos, eu fazia palestra a propósito de meditação, para um auditório culturalmente dos mais qualificados. Em determinado trecho da explanação, citei um dos sapientíssimos pensamentos de Buda. Sempre soube, e na ocasião sabia provavelmente ainda mais, que Buda não era o nome de uma pessoa, como muitos desavisados e mal-informados pensam, a identificação de um filósofo (ou líder religioso, com,o queiram). Trata-se de um estado de espírito: o de “iluminação”. Àquela altura, portanto, cabia-me dar essa explicação a propósito, à platéia, e dei-a, de fato.
Contudo, faltava-me citar o principal: o “nome” de batismo desse príncipe hindu, que abriu mão de fortuna, poder e realeza em busca de iluminação espiritual. E quem disse que eu me lembrava?! Fui enrolando, enrolando e enrolando os ouvintes, para ganhar tempo e lembrar-me, finalmente, desse prenome que tanto conhecia, em vão. Não havia jeito da memória trazer-me à tona o tal do nome.
Os minutos foram passando, a palestra foi ficando mais extensa do que havia sido planejada e que deveria ser para não cansar os ouvintes, e nada da tal informação essencial aflorar à memória. O bom palestrante, convém lembrar, é o que tem o chamado “jogo de cintura”. Seus eventuais apuros nunca vêm a público. Sabe disfarçá-los muito bem e ninguém os percebe. Se for realmente experiente, “dribla”, com habilidade (e alguns com elegância) seus esquecimentos. Não sou nenhum orador excepcional. Todavia, estou na média, mais para bom do que para ruim.
Mudei, pois, subitamente de assunto e encerrei a tal palestra, por sinal, muito elogiada, com a retórica característica do orador experiente. Bastou, porém, concluí-la, sob aplausos entusiasmados da platéia, para a tal informação que me fugira piscar diante dos meus olhos, como um grande cartaz de cinema em neon. “Sidarta Gautama!!!!!”, murmurei baixinho, mas não o suficiente para não ser ouvido por um dos componentes da mesa de trabalhos, sentado ao meu lado, que, inoportunamente, me perguntou: “O que o senhor disse?”. “Nada, nada!”, respondi entre constrangido por ter lembrado em hora errada o nome de Buda e irritado com a indiscrição do sujeito que poderia e deveria permanecer calado.
Há casos, porém, em que o detalhe que nos foge da memória só é lembrado muitos dias depois. Não sei de episódios – normais claro, não os patológicos – em que as pessoas não se lembram nunca de coisas que conhecem e que se esqueceram. Mas... devem haver. Esse tipo de esquecimento não se deve a nenhuma doença ou disfunção orgânica, sobretudo mental.
Todos têm tais lapsos em algum momento da vida. Trata-se, no meu entender, de “mistura de fichas”, de desorganização em nosso arquivo cerebral. Por isso, não é de bom alvitre confiar cegamente na memória, por maior que seja a nossa fama de a termos privilegiada. Convém, nesses casos, ter à mão uma providencial “cola”. Se não precisarmos dela, tudo bem. E se tivermos necessidade desse recurso, ele estará ali, providencial e imediato, bem à nossa mão.
Se confiarmos cegamente na memória, estaremos sujeitos, não raro, a cair em ridículo. Principalmente se, além de "desmemoriados" (posto que temporariamente), formos também teimosos. Daí a necessidade de arquivos, principalmente para socorrer o jornalista, o escritor e o historiador, entre outros. Este último, se pretender narrar os acontecimentos de maneira científica (se é que isso é possível), com rigorosa e milimétrica exatidão, terá de contar com informações consistentes, de preferência literais (como documentos originais, por exemplo) registrando os principais fatos com seus detalhes essenciais, para que uma realidade que deseja preservar não seja transformada em mera ficção.
Volto a bater na mesma tecla, reiterando o que escrevi diversas vezes, por se tratar de constatação que fiz através de experiência pessoal: nem tudo (ou quase nada) do que "lembramos" aconteceu exatamente da maneira que achamos. O tempo deturpa detalhes, modifica circunstâncias, suprime ou acrescenta personagens e assim por diante, alterando pontos essenciais do acontecimento, embora tenhamos a convicção íntima de estarmos certos em nossa descrição. Em assuntos banais, nada disso tem muita importância. Mas quando se trata de algo sério... E refiro-me, reitero novamente, ao esquecimento natural, não o causado por alguma das tantas patologias que podem afetar severamente a memória.
O ensaísta francês do século XVI, Michel Eyquem, conhecido como Montaigne, entre as preciosas lições que nos legou em seu livro "Os Ensaios", deixou registrada esta verdade: "Toda sabedoria e todos os discursos do mundo se resumem nisso: ensinar o homem a não temer a morte". Eu acrescentaría que os seres humanos têm dois tipos de extinção. O primeiro é o físico, cuja ocasião exata desconhecemos, mas que sabemos ser inexorável. O segundo é o da memória, da lembrança, da marca da nossa passagem pela vida.
Este é mais cruel. A grande maioria das pessoas, consciente ou inconscientemente, procura vencer de todas as formas a sua efemeridade. Busca deixar no mundo algo que as lembre por todos os tempos. Esta é a imortalidade que o ser humano mais aspira e a única que lhe é acessível. E depende do que? Exatamente dessa “velha louca”, que nos dá freqüentes mancadas e calotes e nos causa tantos e tamanhos constrangimentos: a memória.
Pedro J. Bondaczuk
A memória, conforme afirmei em texto recente, costuma nos pregar peças incríveis. Fatos de que nos “lembramos” ter ocorrido de determinada maneira, ocorreram na verdade de outra, com inúmeros detalhes esquecidos e outros tantos acrescentados por nossa própria conta, pela imaginação e, portanto, diferentes dos realmente acontecidos. E não é só isso. Em determinados momentos em que ela não poderia nos falhar, falha. E nos causa, na melhor das hipóteses, alguns constrangimentos, logicamente desagradáveis que, na verdade, são bastante chatos.
E nem é necessária a presença de alguma patologia para que a memória nos dê mancada. Lúcidos e sadios, passamos por essa frustração. Há alguns anos, eu fazia palestra a propósito de meditação, para um auditório culturalmente dos mais qualificados. Em determinado trecho da explanação, citei um dos sapientíssimos pensamentos de Buda. Sempre soube, e na ocasião sabia provavelmente ainda mais, que Buda não era o nome de uma pessoa, como muitos desavisados e mal-informados pensam, a identificação de um filósofo (ou líder religioso, com,o queiram). Trata-se de um estado de espírito: o de “iluminação”. Àquela altura, portanto, cabia-me dar essa explicação a propósito, à platéia, e dei-a, de fato.
Contudo, faltava-me citar o principal: o “nome” de batismo desse príncipe hindu, que abriu mão de fortuna, poder e realeza em busca de iluminação espiritual. E quem disse que eu me lembrava?! Fui enrolando, enrolando e enrolando os ouvintes, para ganhar tempo e lembrar-me, finalmente, desse prenome que tanto conhecia, em vão. Não havia jeito da memória trazer-me à tona o tal do nome.
Os minutos foram passando, a palestra foi ficando mais extensa do que havia sido planejada e que deveria ser para não cansar os ouvintes, e nada da tal informação essencial aflorar à memória. O bom palestrante, convém lembrar, é o que tem o chamado “jogo de cintura”. Seus eventuais apuros nunca vêm a público. Sabe disfarçá-los muito bem e ninguém os percebe. Se for realmente experiente, “dribla”, com habilidade (e alguns com elegância) seus esquecimentos. Não sou nenhum orador excepcional. Todavia, estou na média, mais para bom do que para ruim.
Mudei, pois, subitamente de assunto e encerrei a tal palestra, por sinal, muito elogiada, com a retórica característica do orador experiente. Bastou, porém, concluí-la, sob aplausos entusiasmados da platéia, para a tal informação que me fugira piscar diante dos meus olhos, como um grande cartaz de cinema em neon. “Sidarta Gautama!!!!!”, murmurei baixinho, mas não o suficiente para não ser ouvido por um dos componentes da mesa de trabalhos, sentado ao meu lado, que, inoportunamente, me perguntou: “O que o senhor disse?”. “Nada, nada!”, respondi entre constrangido por ter lembrado em hora errada o nome de Buda e irritado com a indiscrição do sujeito que poderia e deveria permanecer calado.
Há casos, porém, em que o detalhe que nos foge da memória só é lembrado muitos dias depois. Não sei de episódios – normais claro, não os patológicos – em que as pessoas não se lembram nunca de coisas que conhecem e que se esqueceram. Mas... devem haver. Esse tipo de esquecimento não se deve a nenhuma doença ou disfunção orgânica, sobretudo mental.
Todos têm tais lapsos em algum momento da vida. Trata-se, no meu entender, de “mistura de fichas”, de desorganização em nosso arquivo cerebral. Por isso, não é de bom alvitre confiar cegamente na memória, por maior que seja a nossa fama de a termos privilegiada. Convém, nesses casos, ter à mão uma providencial “cola”. Se não precisarmos dela, tudo bem. E se tivermos necessidade desse recurso, ele estará ali, providencial e imediato, bem à nossa mão.
Se confiarmos cegamente na memória, estaremos sujeitos, não raro, a cair em ridículo. Principalmente se, além de "desmemoriados" (posto que temporariamente), formos também teimosos. Daí a necessidade de arquivos, principalmente para socorrer o jornalista, o escritor e o historiador, entre outros. Este último, se pretender narrar os acontecimentos de maneira científica (se é que isso é possível), com rigorosa e milimétrica exatidão, terá de contar com informações consistentes, de preferência literais (como documentos originais, por exemplo) registrando os principais fatos com seus detalhes essenciais, para que uma realidade que deseja preservar não seja transformada em mera ficção.
Volto a bater na mesma tecla, reiterando o que escrevi diversas vezes, por se tratar de constatação que fiz através de experiência pessoal: nem tudo (ou quase nada) do que "lembramos" aconteceu exatamente da maneira que achamos. O tempo deturpa detalhes, modifica circunstâncias, suprime ou acrescenta personagens e assim por diante, alterando pontos essenciais do acontecimento, embora tenhamos a convicção íntima de estarmos certos em nossa descrição. Em assuntos banais, nada disso tem muita importância. Mas quando se trata de algo sério... E refiro-me, reitero novamente, ao esquecimento natural, não o causado por alguma das tantas patologias que podem afetar severamente a memória.
O ensaísta francês do século XVI, Michel Eyquem, conhecido como Montaigne, entre as preciosas lições que nos legou em seu livro "Os Ensaios", deixou registrada esta verdade: "Toda sabedoria e todos os discursos do mundo se resumem nisso: ensinar o homem a não temer a morte". Eu acrescentaría que os seres humanos têm dois tipos de extinção. O primeiro é o físico, cuja ocasião exata desconhecemos, mas que sabemos ser inexorável. O segundo é o da memória, da lembrança, da marca da nossa passagem pela vida.
Este é mais cruel. A grande maioria das pessoas, consciente ou inconscientemente, procura vencer de todas as formas a sua efemeridade. Busca deixar no mundo algo que as lembre por todos os tempos. Esta é a imortalidade que o ser humano mais aspira e a única que lhe é acessível. E depende do que? Exatamente dessa “velha louca”, que nos dá freqüentes mancadas e calotes e nos causa tantos e tamanhos constrangimentos: a memória.
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