Friday, July 22, 2011







Meticuloso exame

Pedro J. Bondaczuk


A quantidade de temas à disposição do escritor é imensa, avassaladora, diria, até, infinita. Por isso, fico admirado quando algum deles se queixa de falta de assunto para justificar o fato de não escrever um novo livro, ou vários deles. Balela! O que lhe falta, na verdade, é vocação para a atividade. Ou talvez lhe falte disposição e amor pelas letras. Se o tal “escritor” tiver talento, nunca, jamais, em circunstância alguma, lhe faltarão assuntos para desenvolver, não importa de que forma ou em que gênero. É mais provável, até, que se sinta paralisado, ou pelo menos atrapalhado, no momento de escolher sobre o que escrever, mas por excesso de alternativas, não por falta delas.

Claro que, para abordar com segurança e eficiência determinado tema é necessário que se saiba o máximo que for possível a respeito. É uma tolice tentar ditar cátedra sobre o que não se sabe. Requer-se, do escritor, sobretudo, capacidade ímpar de observação, sem a qual dificilmente chegará a qualquer lugar. Ou seja, a habilidade de sempre encontrar ângulos novos e originais mesmo nos assuntos mais batidos (ou principalmente nestes), naqueles super explorados. Isso é possível? Aí é que está o nosso grande desafio. E refiro-me, aqui, apenas ao concreto, ao palpável, ao visível, ao real, sem entrar na seara da imaginação.

Gustave Flaubert, em carta enviada ao seu “filho espiritual”, Guy de Maupassant, deu-lhe o seguinte conselho a propósito: “Aquilo que devemos fazer é examinarmos com a demora suficiente e bastante atenção o que quisermos descrever, a fim de descobrir algum aspecto que ninguém tenha ainda visto ou de que ninguém tenha ainda falado. Em todas as coisas existe algo de inexplorado, porque estamos habituados a utilizar-nos de nossos olhos apenas com a recordação daquilo que já foi antes pensado a respeito do objeto de nossas contemplações”.

Para que essa descrição original seja possível, todavia, é preciso atentar para a forma como outros descreveram o tal objeto, ou a tal pessoa ou a tal situação não importa. Nessa pesquisa, interessa tanto o que os outros observaram, quanto (e principalmente) o que deixaram escapar, ou seja, de observar. Nesse processo, é indispensável que não nos deixemos impressionar pela forma com que aquilo foi pensado pelos que nos antecederam. Nosso intuito é explorar, exatamente, as lacunas que deixaram. E Flaubert garante que sempre haveremos de encontrar aspectos inexplorados, ou mal-explorados. Minha experiência pessoal diz que ele estava coberto de razão.

No citado texto escrito para Maupassant, o autor de “Madame Bovary” também observou: “Todas as coisas, por insignificantes que sejam, contêm um pouco de desconhecido. É este o que devemos procurar. Este método forçou-me a descrever em poucos períodos as pessoas e os objetos de um modo que os singularizava exatamente, diferençando-os de todos os objetos ou pessoas da mesma raça ou espécie”. Daí ter produzido obras-primas, originais, inigualáveis, primorosas, como “Madame Bovary”, “Salambô”, “Memórias de um louco” e “A educação sentimental”, entre tantas outras.

Claro que esse processo requer, além de aguçada capacidade de observação, aspecto que faço questão de reiterar, paciência, muita paciência. Isso sem insistir na existência de talento para as letras. Nenhuma obra-prima nasce por geração espontânea. E esqueçam essa balela de inspiração. O que nos move em literatura (como ademais, em tudo na vida) é a “transpiração”. É o esforço, é a autodisciplina e, em resumo, é o trabalho, muito trabalho. “Tanto esforço vale a pena?”, perguntam-me, amiúde, os que julgam que escrever meia dúzia de lugares comuns já os qualifica como escritores e que, quando fracassam, se julgam injustiçados. Claro que, quem pensa dessa maneira, não tarda a cair em si e a se frustrar face sua incapacidade. Afinal, nem é do ramo. A literatura não é a sua praia.

A originalidade, tão preciosa e pretendida, não está em temas complexos e nem na mera descrição do insólito. Está, isto sim, no supostamente comum, no aparentemente trivial, nos assuntos que a maioria desdenha, por entender que não tenham importância ou que esta seja ínfima. É aí, na sua exploração, de sorte a interessar e prender os leitores, que se revela o genuíno talento. É a grande matéria-prima das obras-primas, das que não se esgotam face à passagem do tempo, mas, pelo contrário, se valorizam, mais e mais, à medida que anos, décadas ou séculos transcorrem.

Baseado na experiência pessoal (personalíssima), Flaubert dá um exemplo, a Maupassant, de como seu “filho espiritual” poderia ser original na descrição de pessoas, cenários, objetos etc.: “Quando você passar junto de um merceeiro sentado à frente de seu armazém, ou de algum porteiro fumando seu cachimbo, ou de um cavalo de cabriolé num ponto de estacionamento, mostre-me aquele merceeiro e aquele porteiro na posição em que estavam, com seu aspecto físico, salientando também, por meio da fidelidade de seu retrato, toda a natureza moral dos mesmos, de modo que eu nunca os possa confundir com outros merceeiros ou porteiros. E faça-me ver com uma simples palavra, com uma frase, que o cavalo do cabriolé não se parece com os outros cinqüenta que se seguiam e que o antecediam”.

Esse tipo de descrição, convenhamos, não é para qualquer um. É necessário (reitero pela enésima vez) talento, muito talento, aquele consensualmente reconhecido. Mas apenas essa aptidão não basta. Há muito sujeito talentoso, mas sumamente distraído, para não dizer relapso. É necessário que a ela se agregue uma capacidade ímpar de observação, diria, a feita com olhos de lince, que enxerguem muito além das meras aparências.

Requer-se, também, sólida cultura, advinda da leitura obsessiva de “n” livros. Mas não aquela apressada, desatenta, que não se detém em nuances e que se constitui, até, em desrespeito ao autor dos livros lidos. Dessa, qualquer escritor genial, como foi Gustave Flaubert, certamente prescinde e dispensa. Sendo observador, culto, autodisciplinado e atento, não há como faltar assunto ao homem de letras talentoso. Tente.






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