Saturday, July 16, 2011







Manufaturamos realidades

Pedro J. Bondaczuk


O genial escritor português Fernando Pessoa escreveu, em um de seus tantos e tantos textos que, amiúde, “manufaturamos realidades”. “Mas como?”, perguntará, atônito, o leitor, achando que se trata, meramente, de frase de efeito do poeta dos heterônimos. “A realidade não é uma só para todos?”. Creiam-me, não é. O tema é um tanto complexo, mas vou tentar explicar com o máximo de clareza e objetividade que meu estilo e minha capacidade de expressão permitam.

O que chamamos de “realidade”, nem sempre é geral e muito menos consensual. E, raramente, é aleatório. Ou seja, dificilmente ocorre por acaso. Quase sempre tem nossa interferência pessoal, quer por ação, quer por omissão e é conseqüência de nossa forma de ser e de reagir diante de determinado fato ou acontecimento. O que é realidade para mim, não o é para bilhões de pessoas ao redor do mundo e vice-versa. Elas não vivem a mesma circunstância que vivo e não raro sequer tomam ciência do que para mim é tão importante (e, às vezes, decisivo) e para elas, óbvio, não é.

Tomemos por exemplo o início da primeira guerra do Golfo Pérsico, deflagrada com o maciço ataque aéreo norte-americano a Bagdá, se não me falha a memória em 19 de janeiro de 1992, tendo por pretexto para essa ação militar belicosa a expulsão das tropas iraquianas que haviam invadido o reino do Kuwait. Foi o primeiro conflito armado cujo início foi transmitido praticamente “ao vivo” pela televisão para boa parte do mundo. O mesmo fato, porém, ensejou uma série de “realidades” diferentes, derivadas de uma “realidade geral”, que foi o tal bombardeio.

Para os pilotos das moderníssimas aeronaves, inclusive dos Steahealths – os tais aviões “invisíveis” aos radares – ela foi uma. A mesma, talvez, dos artilheiros que, de alto mar, de bordo de modernas belonaves, disparavam potentíssimos e ultracerteiros mísseis ditos “inteligentes”. Consistia no cumprimento de determinada missão, que lhes fora atribuída pela cúpula militar do Pentágono e ordenada, por seu turno, por George Bush (o pai), então presidente dos EUA. A ordem era clara e peremptória: destruir todos os meios de defesa do “inimigo”, mas com o mínimo de perdas (se possível, nenhuma) para os atacantes. Já a realidade dos defensores da cidade era a de tentarem abater o máximo possível de aeronaves inimigas e não serem atingidos pelos bem-armados agressores. E qual era a da população civil? Era a mesma dos atacantes e dos defensores? Não, não e não! Era trágica! Era impotente. Era de extrema vulnerabilidade.

Homens, mulheres e crianças, os indefesos moradores da cidade, eram as verdadeiras vítimas (diria únicas) do conflito, que não provocaram, certamente desaprovaram e com cujas conseqüências tinham que arcar quase que sozinhos. Embora a imprensa (desgraçadamente parcialíssima também nesse caso), não registrasse (nunca registrou), o número de mortos e feridos entre os residentes de Bagdá, este foi infinitamente maior do que o dos protagonistas do desigual confronto militar. Isso sem falar dos prejuízos materiais que recaíram, todos, sobre os ombros da população civil (a que sobreviveu, é obvio).

Recordo-me que, na época, eu era editor de Política Internacional do Correio Popular de Campinas e cabia-me a tarefa, portanto, de noticiar, com a maior clareza, objetividade e isenção o ataque (como se com os meios que tinha ao meu dispor isso fosse possível). Para adiantar o serviço, sem depender dos despachos das agências noticiosas internacionais, postei-me, atento, diante de um aparelho de televisão na redação do jornal para captar o máximo de dados e impressões e reproduzi-los em texto.

Ao meu lado, vários funcionários de diversos setores da empresa acompanhavam a transmissão do ataque, que mais parecia um jogo de videogame do que guerra real. Um deles chegou a exclamar, embasbacado, maravilhado, embevecido: “Que maravilha!”. Isso chocou-me profundamente. Como maravilha?!!!, cara pálida! O indivíduo não se dava conta que aquelas explosões, que formavam arabescos de luz, tragicamente belos, como figuras de um gigantesco calidoscópio, estavam matando anciões, mulheres e crianças em profusão, que nada, absolutamente nada tinham a ver com a guerra e não tinham como fugir de balas e bombas.

Fiz essa observação ao tal indivíduo, que retrucou: “Eles merecem! Afinal, apóiam um ditador como Saddam Hussein”. Ou seja, as vítimas foram classificadas como agressoras ou coniventes com um suposto agressor, no caso o líder iraquiano, na mente daquela pessoa relativamente bem-informada (e de bilhões mundo afora, incapazes de raciocinar, com um mínimo de objetividade, por si sós) . A realidade “geral” era uma só: os bombardeios. Suas “interpretações”, inclusive a do alienado telespectador ao meu lado, é que não eram iguais. Muito pelo contrário. Se o vilão era Saddam, por que punir tão pesadamente suas verdadeiras vítimas? Por que atacar casas, ruas, vilas etc. que abrigavam apenas inocentes? Comentaristas, jornalistas de todas as funções e cientistas políticos redobraram esforços para tentar justificar o injustificável. Fizeram, no final das contas, do agressor o grande “herói” da questão, louvado em verso e prosa. Já as vítimas... Todavia, não convenceram. Não, pelo menos, os que raciocinam com lógica e racionalidade.

Esse caso foi, pois, a típica “manufatura de realidades”. E não apenas duas ou três, mas diversas, várias, quiçá infinitas. E estas eram (como soem ser sempre) multivariadas (na interpretação e nos efeitos). A não ser que ocorra uma catástrofe planetária, como o choque de um cometa ou de um asteróide com a Terra, minha “realidade” será sempre limitada ao espaço em que eu estiver. Afinal, uma coisa é ser vítima dela e outra, mero espectador.

Essa mesma realidade pode (ou não) ser, também, a de várias outras pessoas, atingidas pelo mesmo fato. Mas não será a de “todos” os habitantes do Planeta. É o caso do recente terremoto, seguido de devastador tsunami, no Japão. Portanto, o que é real para mim, pode não passar de fantasia, de um “jogo de videogame” para tantos outros e vice-versa. Por isso, concordo e avalizo a constatação de Fernando Pessoa: “Manufaturamos realidades”. E a todo o instante.



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