Thursday, April 07, 2011



“Toque de Classe” no ar


Pedro J. Bondaczuk


A apresentação de programas musicais na televisão, quando não acompanhada de cenários magníficos, de dança e de outros recursos visuais para prender a atenção do telespectador, geralmente costuma não vingar. Acaba ficando cansativo e forçando a pessoa que está assistindo a mudar de canal. Eu, pelo menos, sempre me opus a esse tipo de programa, mais apropriado para o rádio. Afinal, TV é, acima de tudo, imagem.

Todavia, essa minha convicção ficou um pouco abalada, tempos atrás, quando tive a oportunidade de ver algo no gênero que tinha tudo para confirmar a minha tese e que, no entanto, não confirmou. Trata-se da apresentação do “Um Toque de Classe”, levado ao ar, todas as quartas-feiras, às 22h30, pela Rede Manchete.

Há tempos eu tinha a intenção de comentar esse programa, mas preferi, cautelosamente, aguardar um pouco, assisti-lo por várias semanas, para conferir se o seu altíssimo padrão de bom-gosto se manteria estável. E se manteve. Isso vem provar que a boa música, interpretada por artistas competentes, prescinde de qualquer enfeite, que não seja a própria harmonia, para agradar a todos os ouvidos. É intemporal, eterna, sem pátria e nem fronteira ou qualquer tipo de barreira. Para avaliá-la, só mesmo usando o critério da sensibilidade.

Um boa composição dispensa artifícios. Não necessita que quem a ouve seja músico, crítico ou entendido. Toca a sensibilidade e prende totalmente a atenção. O “Toque de Classe” da última quarta-feira fez uma salada exótica que, vista no papel, teria tudo para não funcionar.

Imagine o leitor um programa em que apareçam, juntos, a “Serenata”, de Franz Schubert; a canção “Quem sabe”, de Carlos Gomes, “Mambo Jambo” e “Rapsody in Blue”, apenas para citar alguns. Parece um cardápio, no mínimo, incompatível, não é mesmo? É como comer macarronada com feijoada e pizza, tudo ao mesmo tempo, acompanhados de uma pinguinha com fatias de melancia. Parece (e no caso das comidas, é) algo sumamente indigesto.

Entretanto, para minha surpresa (e, certamente, de muitos telespectadores que comentaram esse programa comigo) foi isso o que o apresentador Arthur Moreira Lima levou ao ar e, o que é mais surpreendente, com um resultado extremamente gostoso. A seleção musical conseguiu prender a atenção sem que no cenário houvesse luzes estroboscópicas ou coisas semelhantes, mulheres desnudas fazendo ginástica ou aquela famosa fumacinha, tão usada nas gravações de clipes. O cenário, embora equilibrado e de bom-gosto, era despojado, o que confirma que o cenógrafo e figurinista da Manchete, Arlindo Rodrigues, é, mesmo, um gênio.

O segredo do “Um Toque de Classe” esteve em três pontos, nesse programa específico (como, ademais, em vários outros que assisti nas semanas anteriores): na apresentação competente desse que é um dos maiores e mais consagrados pianistas brasileiros de todos os tempos que, além de tudo, é um homem extremamente culto; na qualidade das músicas, com linhas melódicas de raríssima sensibilidade e, principalmente, nos intérpretes.

Se alguém comentasse comigo que Ney Matogrosso havia incorporado a canção de Carlos Gomes, “Quem sabe”, ao seu repertório, minha reação inicial, certamente, seria de choque. Iria achar incompatível. Todavia, ouvindo a composição na voz desse intérprete surpreendente, o resultado foi devastador. O casamento foi para lá de perfeito. A plangência e o toque de tristeza que o compositor, certamente, quis dar apareceu ao natural, de corpo inteiro.

Outro malabarismo musical de impacto foi a apresentação do clássico da música norte-americana, “Rapsody in Blue”, na execução da Orquestra Tabajara, mas em ritmo de samba. E isso sem que a música perdesse nada da sua qualidade. Pelo contrário, ganhou a alegria que o nosso povo reflete em tudo o que faz e que está presente, também, é claro, em nossas manifestações musicais.

O maestro Severino Araújo, nos seus 68 anos de idade, foi outra surpresa. Parece um jovem, com menos de 30 anos. Ainda mais quando a sua orquestra, que tem meio século de existência e é a mais antiga em atividade no Brasil, ataca um mambo, ritmo que a caracterizou.

Por tudo isso, coloco, prazerosamente, minha mão no fogo e recomendo ao leitor, que ainda não tenha assistido “Um Toque de Classe”, que se ligue, na próxima quarta-feira, às 22h20, na Rede Manchete, para conferir tudo o que eu disse desse programa.

Aliás, das emissoras comerciais, a caçula é a única que vem revelando preocupação sadia em fazer uma programação voltada para todos os públicos e todos os gostos. E quando apresenta um programa tipo Classe A, tem sensibilidade suficiente para trazer o telespectador a esse nível e não se nivela por baixo para conquistar pontos de audiência no Ibope. Demonstra, sobretudo, o que este crítico vem cobrando, há anos, dos programadores de TV: criatividade.


(Comentário publicado na página 10, Variedades, do Correio Popular, em 5 de abril de 1986).


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