Tuesday, April 07, 2009

Um caso de amor


Pedro J. Bondaczuk

CONTO

Theobaldo Miranda estava no topo do mundo. Seu mais recente romance, “Um caso de amor”, era o sucesso editorial da temporada. O livro era fenômeno de vendas e estava há já três meses na lista dos dez mais vendidos da revista Veja, subindo, de semana a semana, um novo degrau na colocação.
As críticas eram todas favoráveis e Theobaldo já nem estava dando conta de tantos compromissos. Eram organizadas, por exemplo, noites e mais noites de autógrafo, País afora, em Belém, Salvador, Recife, Brasília, Porto Alegre, Belo Horizonte e tantas outras cidades, que o veterano escritor até chegava a esquecer. Em São Paulo, esse tipo de promoção chegava às dezenas, sempre com enorme afluência de público nas livrarias em que ocorria.
Palestras em escolas, clubes e teatros Theobaldo fazia em profusão. Houve dia, até, de fazer três: uma de manhã, outra à tarde e outra à noite. Isso lhe rendia um bom dinheiro, é verdade, já que as apresentações não eram gratuitas, mas custavam, em média, R$ 500,00 aos interessados. Mas que eram cansativas, isso ninguém poderia negar. Apesar do alto preço que cobrava, porém, o veterano escritor continuava muito requisitado. Só não fazia mais palestras por absoluta falta de tempo.
Após sucessivos fracassos, Theobaldo, finalmente, saboreava o doce gosto do sucesso, da notoriedade e da fama com que tanto sonhara. Já participara de todos os programas imagináveis de entrevista na TV, em especial no do Jô Soares, tão procurado por escritores.
A nova editora cobrava-lhe, insistentemente, um novo livro, para aproveitar a maré favorável. Pudera! Com o volume de vendas de “Um caso de amor”, era o mínimo que poderia fazer. Theobaldo, por seu turno, respondia que já estava planejando novo romance, mas estava coisa nenhuma. Não tinha tempo para nada, nem para respirar. Sequer havia pensado num enredo a desenvolver.
“Quando tudo isso passar, vou para o Recife, para o apartamento do Geraldo, na Praia de Boa Viagem”, prometia a si próprio, lembrando-se do amigo recém incorporado ao seu círculo de amizades, sem que tivesse a mínima noção de quando isso ocorreria ou se viria, mesmo, a acontecer.
O sucesso do “Um caso de amor”, despertou a atenção do público para os seus livros anteriores, notadamente para “Clarita”, que havia se constituído num monumental fracasso editorial, num encalhe para desesperar qualquer livreiro por mais sóbrio e comedido que fosse. Foi por causa desse vexame, aliás, que a editora que antes publicava seus contos e romances lhe dera o clássico “bilhete azul”.
Antes de ser rejeitado, porém, ouvira poucas e boas do proprietário. Agora Alípio (este é o seu nome) lhe fazia marcação cerrada, propondo novo e vantajoso contrato para pelo menos mais três livros. A caixa postal do celular de Theobaldo estava repleta de recados do desesperado editor, arrependido da precipitação em dispensar o veterano escritor.
“Clarita”, por exemplo, que havia permanecido encalhado por dois anos consecutivos, esgotou, em menos de um mês, por completo, a primeira edição. Não se encontrava um único e solitário volume, em livraria alguma, “nem mesmo para remédio”. Alípio queria, a todo o custo, reeditá-lo, mas para isso, precisava da autorização de Theobaldo. Este, no entanto, se fazia de difícil. Não queria conversa com quem o havia ignorado e, pior, enxotado, como a um cão sarnento, há somente seis meses.

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Seis meses antes do meteórico sucesso, Theobaldo Miranda vivia a pior crise da sua vida. Crise era pouco. Sentia-se, na verdade, no inferno, num interminavelmente fundo poço de desespero e de sucessivos fracassos. E estes eram tanto profissionais quanto (e principalmente) pessoais. “Desgraça pouca é bobagem”, dizia, então, aos seus botões.
Acabara de se divorciar, por exemplo, de Teresa, mulher que fora, por anos e anos, seu esteio, guarida, grande incentivadora e responsável por tudo o que de bom havia conseguido até então. Fora um processo difícil, tenso e doloroso para ambos, em que os dois saíram bastante feridos emocionalmente.
Ambos disseram, um ao outro, coisas que jamais pensariam em dizer a qualquer pessoa, mesmo ao pior dos inimigos. Faltou pouco, pouquíssimo até para que se engalfinhassem, se agredissem fisicamente ou para que fizessem algo muito pior. A tragédia pairou perigosamente no ar, mas milagrosamente não se consumou.
O amor mútuo, ao se transformar, subitamente em ódio (e nenhum dos dois saberia precisar em que momento isso ocorreu), multiplicou por mil esse sentimento ruim e danoso. Um passou a ser absolutamente insuportável ao outro. Só se encontravam, e esporadicamente, no fórum, em presença do juiz. E mesmo diante da autoridade, travavam azedas batalhas verbais. Várias vezes precisaram ser retirados da sala, ameaçados, até, de prisão, por desacato à autoridade. Mas não chegaram a ser presos.
A sorte era que o casal não tinha filhos. Talvez, na verdade, esse fato se tratasse de azar, já que a probabilidade maior era a de que a insustentável crise conjugal havia desembocado nesse dramático desfecho justamente por isso. Ou seja, por ambos não haverem gerado descendentes. Theobaldo acusava Teresa de ser estéril e esta garantia que o defeito estava nele, já que fizera todos os exames possíveis e imagináveis e os resultados comprovavam sua fertilidade. Quem estava com a razão? Nunca se soube!
Nessa ocasião, “Clarita” já se constituía em enorme fracasso. E ele que se empenhara tanto em escrever esse livro! Nem seus parentes o compraram. Os amigos? Afastaram-se todos. A crítica havia recebido o romance com hostilidade, com mordazes observações depreciativas. Houve, até, quem o ridicularizasse publicamente e escrevesse, em reputada coluna de um dos jornais de maior circulação do País, que não entendia como um texto tão óbvio e tão medíocre pôde ser editado. Provavelmente esse sujeito não leu o livro e baseou sua “apreciação” (na verdade, depreciação) pela leitura das orelhas da capa. Muitos “críticos” tinham e têm esse hábito. Julgam-se todo-poderosos e não têm escrúpulos em arruinar carreiras.
Os direitos autorais, que mesmo nos anos de vacas gordas já não eram tão expressivos, mas que davam para mantê-lo num padrão de vida razoável, começaram a minguar cada vez mais, chegando próximos do zero. E eram todos dos livros anteriores, muito inferiores, por sinal, na avaliação de Theobaldo, a “Clarita”. Não entendia o que havia acontecido com esse romance. O enredo era original, o texto vigoroso e criativo e, no entanto... Não agradara ninguém.
Com o divórcio, as despesas cresceram em progressão geométrica. Seu advogado era insaciável e sempre pedia mais e mais dinheiro, argumentando ora que era para cobrir a despesa “x”, ora para a “y” e ora para a “z”. “Meu Deus do céu, como é caro se separar de alguém no Brasil!!”, desabafava o desesperado escritor ao seu representante legal. Mas sempre arranjava, na base de empréstimos, os valores pedidos.

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Theobaldo conheceu Valquíria em março de 2004. Apesar de endividado e acossado por credores, precisava, urgente, de uma secretária, para organizar suas anotações e racionalizar as pesquisas que se fizessem necessárias para os próximos livros. Não podia pagar lá um grande salário, mas tinha certeza que muita gente talentosa se disporia a trabalhar para ele por R$ 1.000,00 mensais que, convenhamos, não é nenhuma fortuna.
Precisava escrever! Tinha que acertar na mosca e produzir uma obra fundamental, que o tirasse do buraco. Mas precisava ser um enredo original e bem urdido, que se casasse com o seu estilo preciso e coloquial. Escrever bem, agora, não era mais mero capricho, mas questão de premente necessidade.
O gabinete de trabalho de Theobaldo era uma balbúrdia só. Tinha livros e mais livros empilhados aos montes ao redor da escrivaninha em que ficava seu computador. Papéis de todos os tamanhos e cores, muitos amassados, cobriam todo o tampo e se tornava impossível localizar qualquer anotação nos momentos mais críticos e de maior necessidade.
As pastas com informações imprescindíveis estavam todas fora dos arquivos. Várias pontas de charuto pelo chão completavam o cenário desolador. Ah, e não se pode esquecer dos copos, que Theobaldo usava para beber uísque, e que estavam sem lavar há semanas, empilhados nas prateleiras da biblioteca. Havia, pelo menos, duas dúzias deles e várias garrafas de bebida vazias.
De uns tempos para cá, só conseguia escrever em estado de semi-embriaguez. Sóbrio, não saía nada. Seus arquivos no computador eram truncados e confusos. Só Theobaldo os compreendia. Careciam de urgente reorganização. Havia, por exemplo, pelo menos dez começos de história, mas todos sem continuidade. Qual deles iria, finalmente, desenvolver? Não sabia.
Theobaldo vinha bebendo além da conta e nem percebia. E fumava como uma chaminé velha de fábrica. Como alguém poderia trabalhar num ambiente assim? Não poderia! Ademais, sentia-se solitário. Evitava freqüentar a casa de parentes e de amigos para não ter que ouvir críticas. Mas precisava de companhia.
Às vezes, tentava satisfazer o desejo sexual num conhecido bordel das redondezas, mas nunca consumava a transa. “Será que fiquei impotente?”, perguntava-se aflito. Mas não dava bandeira. Pagava as prostitutas apenas para ouvir suas histórias. “Quem sabe uma delas não poderá ser transformada no best-seller de que tanto preciso”, tentava se justificar. Histórias, ouvia muitas, mas todas bastante parecidas, com começos e finais semelhantes. Novidade! Era isso o que queria. Precisava de novidade. Carecia de um enredo que nenhum escritor ainda houvesse explorado. Será que existia?

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Valquíria, no frescor dos seus vinte e dois anos, recém completados, era de uma beleza estonteante, dessas de virar a cabeça de qualquer homem. Embora um tanto pequenina, nos seus 1,60 m, era toda proporcional, sem ter coisa alguma a mais ou a menos em sua estrutura. Tinha cabelos castanhos, brilhantes, sedosos, saudáveis e cheirosos que lhe iam até os ombros. Seu rosto redondo era enfeitado por dois olhos brilhantes, profundos, inteligentes e sonhadores.
Sua boca era desenhada a régua e compasso, como se diz, pelo mais hábil dos artistas, com lábios carnudos e vermelhos, que prescindiam de batom para serem realçados. E seu sorriso?! Ah, o sorriso de Valquíria! Quando sorria, todo o seu rosto se iluminava e seus olhos pareciam, igualmente, sorrir.
Braços, pernas, seios, quadris, abdome, dedos, tudo era proporcional e belo. Quantos pintores e escultores não gostariam de ter essa beldade por modelo?! Creio que todos que a conhecessem. Sua pele, além disso, era perfeita, da cabeça aos pés, sem manchas, verrugas, cicatrizes ou qualquer outra imperfeição. Era de uma tonalidade morena suave, tendendo mais para o levemente rosado. Seus seios eram do tamanho exato, em formato de taça, nem grandes e nem pequenos, mas proporcionais àquele corpo maravilhoso. As nádegas guardavam, como o resto, a mesma proporcionalidade.
Valquíria, porém, não satisfazia o estereótipo de mulher bela, porém burra. Tinha uma inteligência viva e notável e uma cultura rara em pessoas da sua idade. Estava concluindo o curso de Letras em uma renomada universidade paulistana. Gostava de escrever poesias que satisfaziam o mais exigente dos críticos pela sensibilidade e alto valor literário. Era bem-humorada, bem-informada e atenta a tudo e a todos.
“Mulher perfeita”, diria o leitor. Não! Valquíria tinha profundos problemas psicológicos, embora nunca tenha procurado assistência de um especialista. Era, por exemplo, apaixonada pelo pai, mas não com aquele amor filial normal e comum. Sua paixão era, digamos, proibida. Não tinha caráter afetivo, mas sexual.
Várias noites havia sonhado que fazia sexo com o pai. Era, aliás, um sonho recorrente. Acordada, ficava imaginando como seria estar em seus braços, sentir o seu cheiro, ser penetrada por ele e gozar a não mais poder. Nunca manifestara esse desejo, essa paixão, essa tara quem sabe, a ninguém, nem às amigas mais íntimas. Elas não entenderiam. Ninguém entenderia.
O pai de Valquíria, a bem da verdade, embora beirando os cinqüenta anos, era considerado um homem bastante bonito. Os anos pouparam-no dos estragos naturais. Apenas algumas mechas de cabelos grisalhos sugeriam que não se tratava mais de nenhum adolescente. Esse detalhe, porém, em vez de comprometer sua imagem, dava-lhe um charme irresistível para as mulheres.
Sentimentalmente bem-resolvido, profissionalmente bem-sucedido em sua banca de advocacia, era culto, sério e sóbrio. Ficaria horrorizado se ao menos desconfiasse do tipo de paixão que a filha nutria por ele. Amava a mulher, com aquele amor sereno e equilibrado, misto de paixão da adolescência com uma profunda amizade, que descambava para a completa cumplicidade.
Se Valquíria amava o pai, seu sentimento pela mãe era exatamente o oposto. Odiava-a com ódio absoluto. Reconhecia que era uma bela mulher, mas achava-a vulgar, mesquinha, rancorosa e má. Não suportava o seu linguajar desabrido e desbocado, sempre com um palavrão na ponta da língua. Não entendia o que o pai vira nela. Saíra de casa há questão de dias, por não suportar conviver com ela. Fora morar num pequeno apartamento que dividia com duas amigas da faculdade.
É possível que o leitor suponha que uma mulher de beleza tão estonteante, como era Valquiria, e que tinha paixões e sentimentos tão confusos, fosse uma devassa sexual. Engano! Era recatada e tímida, em matéria de relacionamentos, e perdera a virgindade há apenas dois meses, com um colega da faculdade. Detestou a experiência. Provavelmente o parceiro não soube fazer com que essa primeira relação sexual fosse inesquecível. Não agiu com a delicadeza e compreensão, cabíveis em momentos como esse, mas foi, como se diz popularmente, com “muita sede ao pote”.
Valquiria tinha um namorado, Erasmo, por quem acreditava estar apaixonada. Mas não tinha certeza. Desde que o conhecera, nunca mantivera relação sexual com ele, embora desejasse. Não saberia dizer a razão da sua resistência. O máximo de avanço que permitira fora deixar que o rapaz pusesse seu pênis entre as pernas, mas sem abaixar a calcinha. Trocava, claro, beijos ardentes e apaixonados com ele e até lhe permitira, algumas vezes, que chupasse seus seios, mas nunca fora além desse limite. “Quem sabe, um dia”, vivia dizendo ao desesperado Erasmo.

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Valquiria, ao sair de casa, tinha consciência de que precisaria trabalhar, para assegurar seu sustento. É verdade que tinha uma boa economia na caderneta de poupança, que guardara da farta mesada que o pai lhe dava mensalmente, para pagar a faculdade e suas despesas. Esse dinheiro, contudo, era suficiente para mantê-la, apenas, por alguns meses ou, se tivesse juízo no gastar (e isso a moça tinha), daria para um ano, no máximo. E depois?
Não queria voltar para casa “com o rabo entre as pernas”, como a mãe dissera que faria. Acreditava que não teria muitas dificuldades para arranjar um emprego. O que precisava, porém, era conciliar o trabalho com os estudos. Não podia largar a faculdade, justo no ano da formatura.
Quando leu o anúncio no jornal, do escritor que precisava de uma secretária, intuiu que esse era o emprego certo para ela. Achou que se tratava de coisa do destino. Mal sabia que era mesmo! Trabalhar com algo que se relacionasse com literatura era tudo o que poderia aspirar naquele momento.
É verdade que o salário proposto não era lá muito tentador. Hum mil reais por mês? Não era uma fortuna. Mas daria para cobrir suas despesas e, possivelmente, sobraria ainda alguma coisa para engordar ainda mais a caderneta de poupança. Ademais, se mostrasse eficiência, poderia negociar um aumento. Sempre se pode.
“Um escritor, quem diria?!”, pensou Valquíria com seus botões, assim que decidiu procurá-lo. “Ainda mais Theobaldo Miranda!”, exclamou, em voz alta, causando susto em Letícia, uma das colegas com as quais dividia o apartamento. Ela havia comprado o livro “Clarita”, do veterano escritor, e o lera num só sopro, embevecida com sua sensibilidade e criatividade. Não entendia, pois, a razão das críticas ácidas e todas negativas ao romance, que lera nos jornais. “Ou esse pessoal é burro, ou não leu o livro”, concluiu na ocasião.
Assim que Theobaldo botou os olhos em Valquiria sentiu que essa era a secretária certa para pôr um pouquinho de ordem na bagunça em que seu gabinete de trabalho havia se transformado. E, quem sabe, até para organizar a sua vida pessoal. Era bonitinha, a danada! O perigo era da sua beleza impedir que se concentrasse em seus textos. “Bobagem”, pensou, “ela tem idade para ser minha filha ou até neta”, concluiu.
Apesar da entrevista ter sido rápida e formal, com um tratando o outro de “Senhor Theobaldo” e “Senhorita Valquíria”, rolou indisfarçável “clima diferente” entre ambos. O velho escritor não conseguia tirar os olhos de cima da candidata a secretária. Parecia hipnotizado. Esta, por sua vez, viu, no potencial patrão, traços do pai, por quem era tão apaixonada. Sentiu arrepios involuntariamente. Se a moça observasse bem (é até provável que tenha observado, mas disfarçado), veria um certo volume na parte da frente da calça do interlocutor, fruto de sua excitação, que ele buscava, a todo o custo, disfarçar.
Theobaldo, a bem da verdade, não era o tipo de homem de atrair qualquer mulher apenas pela aparência. Baixinho, gordinho, com entradas profundas nas têmporas e cabelos totalmente grisalhos, estava longe de ser o protótipo do galã de novelas. Ademais, os últimos fracassos contribuíram para acelerar seu envelhecimento. Trajava-se com certo desmazelo e as papadas sob os olhos indicavam os excessos que cometia, sobretudo na bebida. Sua voz era rouca, por causa dos charutos fedorentos e baratos que consumia em profusão. Não lembrava, pois, nem de longe, nem com muito exercício de imaginação, o perfil nobre e belo do pai de Valquíria.

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As mudanças no gabinete de trabalho de Theobaldo, em apenas um mês da presença de Valquíria como sua secretária, foram radicais e surpreendentes. Tudo recendia a limpeza, racionalidade e organização. Os livros da biblioteca estavam todos em seus devidos lugares, classificados por gêneros e assuntos. As pastas voltaram para o arquivo, devidamente arrumadas e qualquer pessoa, mesmo que leiga, poderia consultá-las sem a menor dificuldade. As anotações do escritor estavam catalogadas por assunto, bem à mão para quando precisasse delas e na mais absoluta ordem.
Ademais, não havia mais copos de uísque sem lavar espalhados por toda a parte e muito menos garrafas de bebida (nem vazias e nem cheias). Os cinzeiros estavam limpos e eram esvaziados várias vezes ao dia. Valquíria encontrara, escondida entre os livros numa das estantes da biblioteca, uma caixa de legítimos cubanos, da marca Coíba, que Theobaldo havia ganhado de um amigo, há anos, e eram estes os charutos que o escritor fumava agora, em vez dos anteriores “mata-ratos”, fedorentos e capazes de derrubar qualquer pessoa que ousasse experimentá-los, de tão fortes que eram.
Tudo no local estava limpo, organizado e cheiroso. O gabinete de trabalho estava atrativo e confortável e nenhum escritor que o utilizasse teria a mínima desculpa, principalmente a da distração, para deixar de escrever bem. O computador de Theobaldo estava, igualmente, organizado e formatado. Valquíria se concentrara, principalmente, numa pasta de esboços, que continha uns trinta arquivos de romances e contos iniciados e interrompidos. Qualquer um deles poderia ser continuado e, diga-se de passagem, em favor do veterano escritor, todos eram excelentes. Se concluídos a contento, com o mesmo padrão de qualidade do que já estava escrito, Theobaldo teria a perspectiva não somente de um, mas de vários best-sellers nos próximos anos. O problema era convencê-lo a acabar qualquer coisa, no baixo astral em que estava, em decorrência do divórcio e, principalmente, do fracasso de vendas de “Clarita”.
O relacionamento entre o escritor e sua secretária alterou-se, e muito, neste pouco mais de um mês de convivência. Perdeu a formalidade inicial, aquele que de constrangimento mútuo, e se tornou mais amistoso, coloquial, até de certa intimidade. Ambos não se tratavam mais, por exemplo, pelos nomes de batismo, mas pelas respectivas abreviações: Theo e Val. O relacionamento dos dois estava longe de ser, convenhamos, o de um patrão com sua empregada. A moça era inteligente, tinha bom-gosto e já se arriscava mesmo a dar alguns palpites aos textos de Theobaldo,. que este, surpreso com a criatividade e pertinência deles, acatava de bom grado.
Ainda assim, porém, continuava escrevendo naquele seu método dispersivo. Ou seja, trabalhava, simultaneamente, em várias histórias, sem se concentrar, especificamente, em nenhuma. Ora completava mais uma página do romance, cujo título provisório era “Um caso de amor”, ora revisava o conto “Os anti-heróis”, com o qual não conseguia se satisfazer nunca – embora Valquíria achasse que não havia mais nada a acrescentar ou a suprimir – ora iniciava alguma nova narrativa. O escritor era perfeccionista. Sempre encontrava defeitos onde estes sequer existiam, para desespero de sua secretária.
Se as mudanças no ambiente de trabalho eram surpreendentes e no relacionamento de Theobaldo e Valquíria imprevisíveis, mas marcantes, o comportamento de cada um deles também se alterou, e muito (para melhor, evidentemente). Os dois passaram, por exemplo, a cuidar mais da aparência e nenhum deles saberia explicar a razão de tanto capricho. Trajavam-se não mais de maneira informal, mas como se fossem a uma festa de alto luxo. Um queria impressionar o outro e ambos estavam conseguindo o intento.
Theobaldo, por exemplo, a princípio começou apenas a limitar o consumo de uísque. Logo, passou a não sentir mais nenhuma falta de bebida e não tardou a deixar de vez de beber. Com isso, sua aparência melhorou bastante. Passou a fazer caminhadas diárias e emagreceu muitos bons quilos. Voltou a dormir bem, e as oito horas de que seu corpo e mente necessitavam. Estava mais ágil, física e mentalmente, mais lépido, alegre, otimista e bem-humorado. Por sugestão de Valquíria, resolveu esquecer de vez do fracasso de “Clarita” e se concentrar na produção de um novo e bom livro. Todavia, ainda não tinha se decidido a qual dos tantos já esboçados iria se dedicar.
Ia trabalhar, agora, bem-vestido, bem barbeado, cheiroso e, sobretudo, bem-humorado, o que as pessoas ao seu redor notaram de imediato. Voltou a contar piadas e a se divertir com as trapalhadas constantes no noticiário do dia a dia. O gabinete de trabalho já não mais parecia uma prisão, como há pouco tempo se sentia naquele local, mas um lugar aprazível e inspirador. Podia afirmar, até, que, de certa forma, consideradas as circunstâncias, estava feliz como há muito não se sentia.
Ambos passavam mais de doze horas diárias no confortável gabinete, ora trabalhando, ora somente conversando, com descontração e prazer, sobre literatura. Valquíria passou a ir à casa de Theobaldo todos os dias das semanas, inclusive aos sábados e domingos, mesmo sem ganhar hora extra, mas não se importava. Gostava da companhia do escritor. Só faltava, mesmo, dormir ali – o que, pelo andar da carruagem, não tardaria a acontecer – e, quem sabe, mudar-se, de mala e cuia, para aquela casa em que se sentia tão bem.
Erasmo notou isso e estava uma fera com a namorada. Esta, porém, sempre tinha alguma desculpa engatilhada na ponta da língua. Via de regra argumentava que tinha tarefas muito importantes a cumprir e que o namoro poderia ser deixado para depois. Na verdade, seus sentimentos pelo veterano escritor evoluíam dia a dia, ao mesmo tempo em que esfriavam, ou até desapareciam, pelo namorado. Já eram muito mais do que o mero gostar, do que profunda amizade ou do que simples admiração de uma fã por seu ídolo. Valquíria, todavia, sequer havia se dado conta (ainda) desse seu excessivo apego por Theobaldo.

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Se Valquíria ainda não admitira que estava apaixonada por Theobaldo (e estava), o escritor, por seu turno, tinha plena consciência de que estava amando, como nunca antes amara alguém, à sua encantadora secretária. Não podia passar um minuto sem ela. A moça virara uma obsessão Na sua ausência, sentia-se inquieto, tenso, ansioso e nada parecia ter graça. Assim que ela adentrava à porta do seu gabinete, porém... o mundo se iluminava. Parecia ouvir a música dos anjos quando ouvia a sua voz doce e baixa sussurrando-lhe bom dia. Gostava de tudo nela: do rosto, dos cabelos, dos olhos, do corpo, do andar, do perfume, de tudo, tudo.
Alguns dias depois que descobriu que estava amando, passou a fazer um diário, mas sem nenhuma preocupação com estilo ou até mesmo coerência. Registrava o que sentia de forma intuitiva, assim como todas as circunstâncias dos seus encontros (por enquanto apenas profissionais) e desencontros, quando ela não vinha trabalhar, nos finais de semana.
Em presença de Valquíria, sentia-se confiante, vigoroso, jovem e brilhante. Citava trechos e trechos de poemas que lera na juventude, de T. S. Eliot, Walt Whitman, Drummond, Bandeira e Mário Quintana, entre tantos outros, e admirava-se da própria memória. A moça, por sua vez, ouvia-o, embevecida, como que hipnotizada, sem tirar os olhos do seu rosto, com um sorriso da mais completa beatitude pendurado nos desejáveis lábios.
Certo dia, após o banho, olhando-se no espelho, Theobaldo pilhou-se falando sozinho, em voz alta, em tom discursivo. Era um desabafo que há muito queria fazer, mas jamais verbalizara. “Como a natureza é sacana! Derruba nossos cabelos, enfraquece nossos olhos, murcha nossa pele, aumenta nossa barriga, reduz gradativamente nossas forças e energias, mas mantém a atração pelo sexo oposto. E por garotas novas, recém-saídas da meninice! Ainda se fizesse com que nos sentíssemos atraídos por mulheres maduras, da nossa faixa etária, vá lá! Mas a sacana faz com que fiquemos vidrados somente em carne nova”, pilhou-se gritando em direção ao espelho.
“E que chances temos de competir com garotões sarados, a cada geração mais altos e mais saudáveis, que cuidam da aparência – da pele, dos cabelos, dos trajes – tanto ou mais até que as mulheres e que são cada vez mais bonitos, pelo menos no critério feminino?”, prosseguiu. “Ne-nhu-ma!!!”, gritou, escandindo a palavra.
“Se a natureza fosse realmente justa, já que uma das suas leis é o envelhecimento de todos os seres vivos, faria, no nosso caso, dos homens, com que a atração sexual desaparecesse depois de certa idade. Ou, melhor, que ficássemos sem pinto. Isso mesmo! Que o pinto fosse encolhendo, gradativamente, encolhendo, encolhendo e encolhendo, à medida que o tempo passasse, até desaparecer de vez”, completou, sempre em voz alta. A sorte é que àquela altura não havia ninguém em casa. Caso contrário... pensariam que Theobaldo estivesse bêbado (o que era o mais provável) ou pirando de vez. Não ocorria, contudo, nem uma coisa e nem outra. Estava, apenas, perdidamente apaixonado.
Diga-se, a favor do veterano escritor, que desde que conhecera Valquíria, sua aparência mudara muito, e para melhor. Deixara crescer os cabelos e penteava-os de maneira a esconder as profundas entradas que o caracterizavam. Barbeava-se todos os dias e pintava meticulosamente as mechas grisalhas que antes se concentravam nas têmporas. Perdera por completo a barriga e seus olhos, antes opacos e circundados por papadas de tom azulado, estavam brilhantes, vivos e sem nenhum sintoma de excessos, que não mais cometia. Theobaldo rejuvenescera, sem nenhum exagero, bem uns quinze anos. O amor, ah o amor! Quantos milagres não faz!

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Quando um homem e uma mulher se amam, e convivem, todos os dias, sob o mesmo teto, não importa se no trabalho, na escola ou em qual lugar, e quando seus corpos e mentes se atraem e anseiam desesperadamente um pelo outro, a consumação desse amor se torna meramente questão de tempo e das circunstâncias.
Há exceções, claro, mas este não era o caso de Theo e Val. Ambos se comiam pelos olhos, a despeito da enorme diferença de idade que os separava. Tinham mais coisas em comum do que diferenças. O principal elo que os unia, claro, era o profundo gosto mútuo por literatura. Mas não apenas isso. Gostavam das mesmas músicas, mesmos livros e mesmos filmes, entre tantos outros gostos e preferências.
A revelação, se é que podemos chamar assim (já que ambos estavam conscientes da paixão que nutriam) ocorreu por acaso, como quase sempre acontece nessas circunstâncias. Era uma tarde de sábado, fria e chuvosa, mas a temperatura no gabinete de trabalho de Theobaldo era de “fervura”.
Ambos estavam repassando os dois últimos capítulos que o escritor havia produzido do romance “Um caso de amor”, que era o que estava mais adiantado dos trinta esboços que tinha no arquivo do computador. Valquíria ficou fascinada, em particular, por determinado parágrafo, cujas palavras levaram-na às lágrimas. Aproximou-se do escritor, com a cópia impressa nas mãos, para mostrar-lhe exatamente qual o trecho que a comovera tanto. Intencional ou casualmente, seus corpos se tocaram. O perfume da moça, misto de canela e jasmim, embriagou-o, mais do que as generosas doses de uísque puro que costumava tomar há não faz muito. Subitamente, como que jogados para a frente por alguma força invisível, porém irresistível, ambos caíram nos braços, um, do outro, e trocaram o primeiro e demorado beijo.
Quando se deram conta, estavam transando, furiosamente, no confortável sofá do gabinete. Valquíria, de olhos fechados, vivia a sua recorrente fantasia. Para ela, estava fazendo amor com o pai e não queria que esse momento acabasse nunca. Satisfeitos, nenhum dos dois mostrou o menor constrangimento pelo que havia ocorrido. Ambos sabiam que mais cedo ou mais tarde isto iria ocorrer, embora a razão de um não fosse exatamente a mesma do outro. Mas isso não importava.
Com o passar dos dias, o relacionamento se aprofundou, em vez de esfriar, como quase sempre ocorre nesses casos. Valquíria não teve dúvidas e rompeu o namoro com Erasmo. Não ia dar certo mesmo. Ademais, sentia-se apaixonadíssima por aquele homem tão mais velho que na sua imaginação era a figura escrita do pai. Evidentemente, não era. As diferenças eram gritantes, mas para outro observador qualquer, que não Valquíria.
Theobaldo tencionava, até, pedi-la em casamento. Ponderou a situação, porém, conteve o ímpeto e pensou em fazer a proposta em momento mais oportuno. Enquanto isso, no entanto, queria porque queria que ela fosse morar em sua casa. A moça, porém, relutava. Sabia que, em termos práticos, era o melhor a fazer naquele momento. Faria mais economias ainda do que já vinha fazendo. Ademais, passava mais tempo ali do que no seu apartamento. Tinha, portanto, vontade imensa de morar com Theo, de acordar ao seu lado, de satisfazer as suas vontades, de cuidar dele com zelo e carinho de amante, mas não saberia dizer por que, mudava de assunto toda a vez que o escritor insistia nessa proposta.

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Theobaldo estava mais feliz do que nunca, como jamais se sentira em toda sua vida. Seu semblante irradiava essa felicidade por todos os poros e para quem quisesse ver. Parece que emanava uma luz em redor de sua pessoa, um halo azulado e positivo. Caminhava com aprumo, encarava qualquer interlocutor com confiança e a vida futura se lhe afigurava cheia de promessas de muitas alegrias e de infindável sucesso sem nenhuma nuvem escura a toldar o céu das suas esperanças.
Dera um jeito na situação financeira ao vender uma chácara em Itu, que estava no nome de um testa-de-ferro e que, portanto, não tivera que partilhar com a ex-esposa. Conseguira um bom dinheiro pela propriedade, o que resolvera todas as suas pendências com os credores, que deixariam de existir. Foi suficiente para saldar a totalidade das dívidas e ainda lhe sobrou uma quantia nada desprezível para tocar projetos futuros. Estes, aliás, não faltavam. Tinha planos de concluir algum dos trinta livros esboçados (ainda não decidira qual), procurar uma editora de porte médio e assediar os críticos, mesmo que precisasse suborná-los, para que fizessem avaliação positiva da obra. Não admitia, nem, por hipótese, abandonar a carreira de escritor.
Vivia um momento peculiar, particularmente favorável, de criatividade. O que não ajudava muito era sua indecisão sobre em qual enredo se concentrar. Continuava trabalhando em todos os trinta livros, simultaneamente. Alguns já estavam com dez capítulos prontos e outros apenas nos primeiros. Tinha, ainda, esperanças de uma reversão da trajetória de “Clarita” e se propunha a trabalhar melhor na sua divulgação.
Mas o motivo de tanta felicidade de Theobaldo não era, por exemplo, o fato de haver se reequilibrado financeiramente, embora isso contribuísse, e muito, para que se sentisse tão confiante. Não era, igualmente, a fase de intensa inspiração, posto que julgasse isso importantíssimo, já que literatura sempre fora a paixão de sua vida, além de seu ganha pão. E muito menos a retomada do relacionamento com os amigos, que o haviam abandonado no auge da sua crise pessoal. Não, de fato, não era nada disso.
Theobaldo estava feliz porque amava. E mais, porque se sentia plenamente correspondido. Contava, agora, com verdadeira alma-gêmea, que o entendia, ajudava, inspirava e estimulava. O ápice, a culminância, o clímax de tudo isso ocorreu quando o escritor propôs casamento à sua amada e esta aceitou, sem relutar. O acontecimento se deu em um jantar íntimo com Valquíria, no Restaurante Fasano, que ele organizou a pretexto de comemorar o recebimento do dinheiro da venda da chácara em Itu.
Antes, havia comprado o mais rico (e caro) par de anéis de noivado que encontrou na Joalheria Stern. “Val merece o que há de melhor. Se pedir, dou-lhe o mundo e as estrelas”, raciocinou, quando tomou a decisão de pedi-la em casamento. “E se ela não aceitar? E se me disser coisas que não quero ouvir, como, por exemplo, sobre a nossa diferença de idade, que é muito grande? E se Val rir na minha cara e achar a proposta esdrúxula, incoerente e até mesmo indecente?” Tudo isso, e muito mais, passou-lhe pela cabeça. Decidiu arriscar. Afinal, considerava-se bom jogador. Ou perderia tudo numa única aposta ou quebraria a banca.
Theobaldo ensaiou mil declarações, mas as achou todas piegas e não-condizentes com sua condição de escritor. “O que dizer nessas ocasiões?” Como convencer alguém a aceitar um risco tão grande, como se casar com uma pessoa cuja expectativa de vida não era lá essas coisas? Quanto tempo ainda teria antes da morte? Cinco anos? Dez? Com muito custo, vinte, no máximo. “A quantidade, porém, é o que menos importa, mas a qualidade de vida que posso ter”, raciocinou com seus botões.
O pedido que fez, no entanto, assim que concluíram o jantar, entre risos e casos que contaram, um ao outro, foi seco, direto e fulminante, assim como a resposta. Theo tomou as mãos de Val, que estavam geladas, entre as suas e disparou: “Quer casar comigo?”. A moça não se mostrou surpresa e nem se fez de rogada. Sequer pediu tempo para pensar, como normalmente as moças fazem. Nada disso. Não se fez de difícil e nem se mostrou deslumbrada. Respondeu de chofre, diretamente, sem floreios e nem mas: “Sim!!!”.
A um sinal de Theo, visivelmente surpreso e comovido, o garçom trouxe o legítimo champanhe francês, que o escritor havia encomendado com antecedência, e ambos celebraram aquele momento, tão importante para suas vidas, com naturalidade e alegria. “Finalmente vou poder ter o filho com que tanto sonho”, foi o primeiro e talvez único pensamento de Theobaldo. As coisas foram muito mais fáceis do que o escritor imaginara. Ou seja, jamais poderia utilizar esse desfecho em algum de seus romances, por ser, digamos, banal, por não envolver angústia e nem drama, ingredientes que atraem e retêm os leitores. “Que bom que a vida é mais surpreendente e mais simples do que a ficção!”, desabafou baixinho.

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Subitamente, o mundo desmoronou sobre a cabeça de Theobaldo. Um simples telefonema pôs fim aos seus sonhos, projetos e ambições. Tudo o que havia feito, com tamanho sacrifício, nos últimos meses, perdeu de repente a importância e o sentido. O acaso, o frio e insensível acaso encarregou-se de pôr um ponto final em um maravilhoso caso de amor. O fato ocorreu em um sábado cinzento e gelado, em que São Paulo mais do que merecia a designação de “terra da garoa”.
Theobaldo estava revendo o novo capítulo que havia escrito na madrugada e que pretendia mostrar, logo mais, à tarde, a Val, que prometera dar uma passadinha em sua casa, como, aliás, fazia em todos os finais de semana. Subitamente, o telefone tocou. O escritor teve um sobressalto e, sem saber explicar, teve premonição de que receberia alguma notícia nada agradável. Antes de atender, tentou imaginar o que poderia ser. “Val, provavelmente, não poderá vir hoje”, arriscou um palpite. Pudera, com a correria dos preparativos do casamento, previsto para o próximo mês – portanto, em mais três semanas – a pobrezinha não tinha mais tempo para nada.
“Seu Theobaldo, aqui quem fala é Letícia, companheira de apartamento de Valquíria”, disse, do outro lado da linha, uma voz tensa e chorosa, tão logo Theo atendeu o telefone. O escritor arrepiou-se da cabeça aos pés. Aquele tom, por si só, já prenunciava má notícia, quem sabe, até, uma tragédia. A interlocutora fez uma longa pausa antes de prosseguir.
Os nervos de Theobaldo estavam tensos e ele suava frio. As mãos estavam trêmulas e a boca seca. “Será que Valquíria pediu à amiga para me comunicar o rompimento do compromisso? Não, não pode ser! Ainda ontem, quando nos despedimos, ela me disse, com tamanha doçura e carinho, que me amava! Não pode ser isso! Mas, e se fosse?”, conjeturou.
“Seu Theobaldo, não sei como lhe dizer, mas tenho péssima notícia a lhe transmitir”, disse a voz do outro lado da linha, entre vários soluços. “Diga, diga logo!”, gritou o escritor, impaciente e com a visão já turva pelo medo do que poderia ouvir. “Valquíria sofreu um acidente no centro da cidade. Foi atropelada por um carro em alta velocidade que trafegava na contramão”, disse, finalmente, Letícia.
“Como ela está? Para que hospital foi levada? Qual é o seu estado?”, indagou, aos gritos, atropelando as palavras, em desespero, aturdido, sem saber o que dizer ou fazer. Foi informado que Val fora levada, em estado grave, para o Hospital das Clínicas. “Ela vai resistir. Minha princesa é forte! Não é possível que a vida me apronte mais essa sacanagem!”, pensou Theobaldo, entre desesperado e esperançoso, já dentro do carro, que dirigia como um alucinado em direção do hospital. Mas o pior ainda estava por vir.
Esperava tudo na vida, menos isso. Foi informado que Valquíria não resistiu aos ferimentos recebidos e morreu ainda na ambulância, a caminho do pronto-socorro. E que a autópsia revelou que a moça estava grávida de três meses. Isso mesmo! Theobaldo perdera, num só golpe, duas pessoas que se propunha a amar enquanto vivesse.
Entrou em estado de choque. A dor que sentia era tão pungente, que fez com que procedesse como se nada houvesse acontecido. Não conseguia nem mesmo chorar. O pranto, nesse momento, certamente seria um alívio caído dos céus. Soluçava, urrava, xingava, se debatia, mas nenhuma lágrima rolava de seus olhos.
Tudo lhe parecia irreal: o trânsito, as pessoas, os prédios, o mundo e a vida. Tudo, nesse momento, lhe era agressivo, feio, caricato e mau. “Não é possível! Isto é um pesadelo, do qual logo irei acordar!”, pensava desesperado, sem conseguir assimilar por completo a realidade.
“Não pode ser verdade! Daqui a pouco Valquíria, a minha Valquíria, a minha princesa encantada vai chegar, com aquele seu sorriso maroto, me beijar e dizer que me ama!”, tentava se consolar. Não adiantava, contudo, tentar se iludir. Lá no fundo do cérebro uma realidade piscava, como frias luzes de néon, a dura verdade: Valquíria morreu, Valquíria morreu, Valquíria morreu. “O que será de mim, meu Deus do céu?!”, gritou, no auge do desespero.
Apesar dos pais da namorada quererem se encarregar do sepultamento, Theobaldo não deixou. Tomou todas as providências cabíveis e dispôs-se a assumir as despesas do enterro, que ocorreu no Cemitério Bom Pastor, no Morumbi. A cerimônia religiosa foi breve, mas tocante. Valquíria estava num caixão de luxo, o mais caro da funerária. Parecia dormir. Seus cabelos, bonitos e cheirosos, que cheiravam a canela e jasmim, estavam enfeitados com uma grinalda de flores brancas. Estava belíssima no caixão, vestida de branco, como uma garotinha no dia da Primeira Comunhão.
Cerca de vinte pessoas, apenas, estavam presentes no cemitério. Além dos pais da moça, compareceram ao sepultamento algumas colegas de faculdade e as amigas com as quais dividia o apartamento. O céu estava cinzento, prometendo chuva para qualquer momento.
Valquíria foi sepultada em uma cova cavada num extenso gramado, debaixo de uma frondosa árvore, com pássaros voando ao redor. Era bem o enterro que ela desejaria, ela que amava tanto a natureza e era uma ecologista ferrenha. Theobaldo não suportou ver o caixão baixar à sepultura. Virou as costas e caminhou sem rumo. Nem se lembrava onde estava e muito menos onde havia deixado seu carro.
Saiu caminhando, cabisbaixo, pelas ruas que circundavam o cemitério, tomado de uma angústia indescritível. Nem ele, acostumado a descrever todos os sentimentos possíveis de seu personagem, nem escritor algum do mundo conseguiriam transmitir em palavras o que sentia naquele dramático momento.
Subitamente, agachou-se. Sentia-se cansado, muito cansado, exausto, como se houvesse acabado de subir uma íngreme ladeira carregando uma tonelada de chumbo nas costas. Sentou-se na calçada, colocou a cabeça entre as mãos e prorrompeu num pranto amargo, copioso, sentido, em que a revolta contra tudo e contra todos se misturava à saudade e à profundíssima dor da perda. Uma estudante passou por ele e se deteve. “Moço, moço, precisa de ajuda?”, perguntou. “Não, não, estou bem”, respondeu mecanicamente, entre soluços.
Não saberia dizer quanto tempo ficou ali. Começou a chover. De início, era apenas uma garoa fininha e gelada, que foi aumentando de intensidade, até se transformar em copiosa chuva. Theobaldo, finalmente, ensopado e gelado, tornou a ficar de pé e foi caminhando, lentamente, em direção ao carro, que ficara no estacionamento do cemitério.
Dirigiu, ainda, durante horas, sem rumo ou direção, até quase acabar o combustível do carro. Entrou num posto, abasteceu o veículo e dirigiu de volta para casa. Esta, agora, se lhe tornara mais sombria do que nunca, como se fosse uma masmorra sombria ou um túmulo infecto, sem a risada espontânea e gostosa de Valquíria e sem o eco mavioso de sua voz, que lhe parecia verdadeira canção dos anjos, mesmo quando se limitava a dizer tolices e que nunca mais, em tempo algum, tornaria a ouvir.

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Theobaldo permaneceu prostrado por semanas. Não comia, não se banhava, não se barbeava e limitava-se a beber. Não água, evidentemente. Eram litros e mais litros de uísque consumidos nesses dias todos. Não saberia dizer quantos. Fumava, fumava e fumava bastante e aqueles seus charutos fedorentos de antes de conhecer Valquíria.
Escrever? Nem pensar! Mal se levantava da cama para fazer as necessidades fisiológicas. Não atendia a campainha e nem o telefone. Não queria ver ninguém. Não gostava de ninguém. Detestava o mundo e o cinismo dos pretensos amigos. A caixa postal de seu celular estava superlotada de mensagens, que ele nem se dava o trabalho de conferir.
Seu primeiro impulso foi o de se deixar morrer à míngua, para reencontrar Valquíria, quem sabe, em outro mundo em alguma outra dimensão alhures. Aos poucos, porém, foi retomando a vontade de viver. Lá um belo dia, olhando-se no espelho, concluiu que sua amada, estivesse onde estivesse, não deveria estar gostando nada, nada daquele velho que agora era só pele e osso, com os cabelos completamente grisalhos, com uma barba que lhe ia até o peito e que lhe dava o aspecto de um mendigo. Banhou-se, pois, meticulosamente, barbeou-se com esmero e a nova aparência animou-o.
Fez uma farta refeição, contratou uma faxineira para pôr um pouquinho de ordem no chiqueiro em que sua casa e, notadamente, seu gabinete de trabalho, se transformaram e, subitamente, num lampejo, decidiu que já era hora de voltar a trabalhar. Qual livro concluiria? Era óbvio que seria “Um caso de amor”. Além do texto já estar quase na metade, era o preferido de Valquíria. Faria dele uma obra-prima, em memória da amada.
Contudo, ao sentar-se junto ao computador, não lhe veio nenhuma idéia. Não conseguia escrever sequer uma palavra, quanto mais capítulos e mais capítulos. Subitamente, veio-lhe à mente um impulso que, a princípio, lhe pareceu incoerente e estapafúrdio, mas que, aos poucos, começou a ganhar corpo. “Que tal se eu usasse o meu diário e o adaptasse de forma tal que completasse o ‘Um caso de amor’?”, pensou. Do pensamento à ação, foi um pulo.
Claro que modificou a aparência e as características do principal personagem masculino. Em vez de ser baixinho, com profundas entradas, sem nada que lembrasse nem de longe um atleta, tornou-o alto, atlético, bonito, de cabelos ligeiramente grisalhos nas têmporas. Sem se dar conta, deu, ao seu herói, as características exatas do pai de Valquíria. Sua heroína, contudo, era a finada amada sem tirar e nem pôr. Claro que em seu enredo ela não morria. Separava-se, é verdade, do amante, mas para fazer um curso de artes em Florença, na Itália, com promessas de voltar um dia, de onde enviava e-mails e mais e-mails apaixonadíssimos e pungentes poemas de amor.
“Essa história não vai colar. É positiva demais. A vida não é assim!”, concluiu, ao acabar de escrever o romance. Seu primeiro impulso foi o de deletar o texto e começar tudo de novo. “Imagine, a crítica vai me arrebentar de pancada se publicar algo assim”. Passou dias sem pensar mais no assunto. As lembranças de Valquíria perseguiam-no incessantemente. Transformou seu gabinete de trabalho quase que num santuário. Havia fotos da amada espalhadas por toda a parte. A que achava ser a melhor, e era dificílimo escolher qual fosse já que Val era sumamente fotogênica, além de belíssima, mandou ampliar e fazer um pôster, que colocou numa moldura, cujo quadro pôs bem em frente à sua escrivaninha, para inspirá-lo. E inspirava.
Antes de se desfazer de uma vez por todas de “Um caso de amor”, resolveu dar a um especialista para ler e opinar. Contratou, para esse fim, o Geraldo, que fora o revisor de “Clarita” e que encontrava até pêlo em ovo. Punha defeito em absolutamente tudo e era um sujeito azedo e ranzinza, que não costumava ser gentil com os escritores, por mais nome que tivessem e mais bem-sucedidos que fossem, quando se tratava da qualidade de algum texto. Era de uma sinceridade absurda, completa, agressiva. Theobaldo queria, na verdade, um álibi para justificar ter se desfeito do romance, que certamente agradaria Valquíria.
Passados uns dias, Geraldo retornou à casa do escritor, com ar que pareceu taciturno a Theobaldo, com o calhamaço do romance debaixo do braço. Theo estava pronto para ouvir as críticas que tinha certeza que viriam e estava mais do que disposto a destruir aquele texto que, ademais, lhe era tão íntimo. Era uma história vivida, sofrida, dolorosa até, e não mera obra de ficção. Estava, sobretudo, arrependido de dá-la ao revisor para ler. Deveria tê-la destruído há tempos.
“E então, seu Geraldo”, perguntou, pronto para ouvir uma série de restrições ao seu texto. “Seu Theobaldo, vou ser sincero. O senhor me conhece há anos e sabe que nunca enganei ninguém. Às vezes sou até um tanto ríspido, já que escrever não é brincadeira de criança. Contudo, com toda a sinceridade, em mais de trinta anos de profissão, nunca li algo tão bom. Que livro! O senhor acertou na mosca!”, disse Geraldo, para surpresa e pasmo do escritor.

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Após a avaliação positiva de Geraldo, Theobaldo levou, ainda, um tempão para se decidir a publicar o livro. À medida que o tempo passava, a saudade de Valquíria se multiplicava, doía, inquietava, era uma idéia fixa, uma tortura, uma obsessão. Onde quer que fosse, parecia vê-la, sorrindo, à distância. Fizesse o que fizesse, a lembrança dos momentos de amor e fantasia que tiveram não o largava em momento algum, nos bares, no cinema, no teatro, no estádio durante um jogo de futebol e assim por diante. Valquíria, Valquíria, Valquíria!, gritava seu coração, sem cessar.
Evitava, o máximo que podia, de ficar em casa. A alma da amada estava por toda a parte, em cada cômodo, em cada livro, em cada objeto que ela havia tocado, notadamente no gabinete de trabalho. Sentia-se adoentado, desanimado e envelhecido. Envelhecera, de fato, em semanas, mais do que nos últimos cinco ou seis anos.
Lá numa bela manhã de sol, em que acordou mais disposto do que em outros dias (sonhara com Valquiria, sonho que se tornara recorrente), assim, de repente, não saberia explicar a razão, decidiu, num impulso, que publicaria o livro. Onde? Não sabia. Tinha consciência de que estava “queimado” no mercado editorial. Chegou a cogitar em bancar a edição, mas esbarrou na questão da distribuição. Não, não era este o melhor caminho.
Faria o que todo escritor novato faz, quando acha que produziu uma obra-prima. Iria às editoras, quantas fosse necessário, bateria de porta em porta, com os originais debaixo do braço, até que algum editor se dispusesse a pelo menos ler seu romance. Se não gostasse, paciência. Venceria pelo cansaço.
Uma coisa se deve dizer a favor de Theobaldo: era determinado. Quando decidia alguma coisa, não havia quem o demovesse e o fizesse voltar atrás. E agora estava decidido a publicar o livro, custasse o que custasse. Devia isso a Valquíria, inspiradora e principal personagem desse romance. Era uma forma de tê-la, para sempre, consigo.
Theobaldo tentou vários contatos com Alípio, em vão. Deixava sucessivos recados na sua secretária eletrônica, mas este nunca retornava a ligação. As tentativas de ligar para o seu celular também não deram certo. Bem que Theobaldo insistiu. E não apenas uma vez, mas, sem nenhum exagero, pelo menos uma centena delas. Invariavelmente, todavia, sua chamada caia na caixa postal.
Foi à editora, tentar falar com Alípio, mas este não o recebeu. A secretária informou-o que o editor não estava, que havia viajado, mas o escritor sabia que era mentira. Vira o carro do editor no estacionamento. Essas tentativas duraram um mês inteiro. Theobaldo concluiu que dali não poderia esperar mais coisa alguma. Essa porta lhe estava definitivamente fechada. Pena.
Resolveu contatar outros editores. Em vão. Todos, invariavelmente, davam-lhe a mesmíssima resposta: “nossa programação deste ano já está completa”. E recusavam-se, gentilmente, a recebê-lo. Foram mais de dez tentativas, todas com igual resultado. Alguns, até, se dispunham a publicar o livro, desde que Theobaldo arcasse com as despesas.
Até que, depois de tanto insistir, encontrou quem se dispusesse a pelo menos recebê-lo. Claro que o escritor teve que insistir muito para que isso acontecesse. “Não quero uma definição, mas apenas que você leia o romance. Se não gostar, juro que nunca mais o incomodarei”, disse Theobaldo a Souza, dono de uma editora de porte médio, que se projetava no mercado graças a alguns recentes sucessos editoriais. Três dos seus lançamentos ocupavam posições de destaque na lista dos dez mais vendidos da revista Veja. Um deles, era de um escritor nacional, até então desconhecido. “Esse é o lugar certo”, intuiu o escritor.
Marcaram um encontro para dali a uma semana. No dia combinado, Theobaldo arrumou-se como um noivo para um casamento. Banhou-se, barbeou-se, vestiu seu melhor traje e até parecia aquele sujeito dos bons tempos do namoro com Valquíria, aprumado, olhos brilhantes, passos firmes e confiantes. Queria impressionar o interlocutor já a partir da aparência. Tinha que impressionar.
Foi recebido formalmente, até com uma certa reserva, para não dizer frieza, por Souza, que não escondia a impaciência de se livrar logo de um compromisso, digamos, indesejável. Apenas se dispôs a receber o escritor por causa da sua intuição, que até ali vinha se mostrando infalível. “Quem sabe?! Ninguém esquece de escrever se tiver mesmo talento”, foi o seu raciocínio. Tinha, todavia, mais dúvidas do que certezas.
Theobaldo passou-lhe os originais. O editor começou a ler, amuado, o calhamaço, certo de que interromperia a leitura lá pela página 30 ou menos. Já tinha, até, a resposta de recusa pronta na ponta da língua. Mas o tempo foi passando. Quinze minutos, vinte, meia hora se passaram, e Souza seguia lendo, concentrado, o texto. Sequer piscava. Estava totalmente abstraído, ou melhor, embevecido com o que lia. “Não é possível! O cara é muito bom”, cochichou aos seus botões.
Vez ou outra, balançava a cabeça, em sinal de aprovação. Quarenta minutos depois, chamou a secretária pelo interfone: “Dona Rosa, por favor, traga dois cafezinhos”. E mergulhou, de novo, na leitura, sem sequer se dar conta da presença do escritor, que caminhava pelo escritório, com as mãos cruzadas atrás das costas, à espera de alguma definição. A coisa estava demorando mais do que esperava. “O que será que o Souza está achando? Por que demora tanto em me dar um esculacho?”, pensou, entre desanimado e esperançoso.
Ao chegar à derradeira página, o editor ficou, certo tempo, parado, olhando para o vazio, como que refletindo antes de tomar alguma importante decisão. Não disse nada a Theobaldo. Voltou, isso sim, a falar com a secretária pelo interfone: “Dona Rosa, por favor, prepare, com urgência, um contrato padrão. Mas tenho pressa! É pra já!”. Bingo! A sorte, para ambos, estava lançada.

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Tão logo Theobaldo saiu do escritório do editor, com a cópia do contrato devidamente assinada, Souza fez três ligações sucessivas, para os três críticos literários considerados os melhores do País, que trabalhavam para os três jornais de maior circulação nacional, dois de São Paulo e um do Rio de Janeiro. O teor da conversa foi o mesmíssimo nos três casos.
“Estou lhes enviando, por e-mail, os originais de um livro que vai ser o estouro editorial do ano. Tanto, que pretendo lançá-lo em, no máximo, quinze dias. Quero que você o leia, mas leia mesmo, com toda atenção e sem preconceito e emita sua opinião. Esteja certo que vou saber se leu de fato ou não. Lembre-se que você me deve esse favor. Não vá me decepcionar”, disse Souza, a cada um deles.
Os três receberam a mensagem, estranhamente, da mesma forma: com um pé atrás, assim que souberam de quem se tratava. Mas decidiram fazer o que Souza lhes pedia. “Afinal, o cara tem faro. Não perdeu nenhuma aposta até aqui”, concluíram, ao mesmo tempo, embora cada qual no seu canto e à sua maneira.
Feito isso, o editor ligou para a “vedete” da sua editora, o escritor que ocupava o terceiro lugar na lista dos livros mais vendidos da revista Veja e que tinha, portanto, forte apelo popular e, sobretudo, credibilidade junto ao público. Pediu-lhe que escrevesse um prefácio, urgentíssimo, para “Um caso de amor”. Assim que soube de quem se tratava, porém, o jovem best-seller teve reação idêntica à dos críticos. Ou seja, a de uma certa dúvida sobre a aposta de Souza. Prometeu, contudo, ler o romance e, se “gostasse”, fazer o que o editor lhe pedia.
O dia do lançamento, ocorrido na livraria Megastore, no Shopping Morumbi, foi uma loucura. Uma multidão de ávidos leitores acorreu ao local em busca de uma dedicatória, de uma mensagem ou de um simples autógrafo do escritor, que já estava sendo chamado de “Fênix Literária”, pois, a exemplo da mitológica ave, havia renascido das próprias cinzas.
A procura surpreendeu todo o mundo, em especial os editores de arte dos grandes jornais que, ao saberem da concentração popular, enviaram, às pressas, repórteres e fotógrafos ao local do evento e reservaram espaços em suas respectivas edições, que iriam atrasar seus deadlines, para desespero do pessoal da circulação.
As críticas foram, como Souza já esperava, favorabilíssimas. Pudera, o livro era, de fato, muito bom. Mais parecia uma reportagem – posto que em tom ligeiramente poético – do que um romance. Tinha poesia, humor, cenas de sexo, garra, paixão, verossimilhança etc. Ou seja, contava com todos os ingredientes que compõem um marcante best-seller.
O editor só não esperava um êxito tão fulminante. Mandara, para a livraria, na noite do lançamento, quinhentos exemplares, certo de que estava exagerando na dose. Se exagerou, porém, foi no pessimismo. Essa quantidade não deu nem para esquentar. Por três vezes, teve que enviar, com urgência, a mesma quantidade de cada vez e ainda assim houve quem saísse da livraria sem conseguir comprar o livro. Theobaldo estava, pois, no topo do mundo.
No lançamento, no Rio de Janeiro, ocorrido no Teatro Vanucci, no Shopping da Gávea, a história se repetiu. Os dois mil exemplares que a editora enviou se esgotaram em pouco tempo. Muita gente (dezenas de pessoas) saiu frustrada dali, resmungando, por não ter conseguido comprar o sucesso editorial do momento.
“Seu Theobaldo, seu Theobaldo, por favor, uma palavrinha para os telespectadores da Globo”, interrompeu-o, afoito, um repórter de televisão. O escritor, solícito, dispôs-se a atender o interlocutor.
“Dizem, por aí, que seu romance é baseado em fatos reais. O senhor confirma esses rumores? E, se for, Lenora continua morando na Itália?”, perguntou-lhe, de chofre, o repórter.
Theobaldo sorriu, piscou para Cristine, sua jovem, alta e loira nova secretária – que se caracterizava, além da estonteante beleza, por um par de seios de enlouquecer qualquer mortal – e desabafou: “Fatos reais? Que nada, amigo! O romance é fruto exclusivamente do talento, da criatividade e da imaginação. Quem dera que a vida fosse assim tão bela!”.

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