Monday, April 13, 2009

Além da imaginação


Pedro J. Bondaczuk

O homem, em sua insignificância em relação ao Universo, tem conseguido lampejos de “grandeza” através da razão. Agiganta-se pelo que o distingue das feras broncas: a capacidade de pensar, de refletir, de sonhar, de imaginar, de transformar, de construir coisas novas e extraordinárias, num tempo que, em relação à sua existência individual, pode ser extenso, mas que é ínfimo em termos cósmicos.
Esta foi a conclusão (óbvia) a que chegamos, dia desses, em conversa numa roda de amigos, num dos barzinhos da moda da cidade, onde, amiúde, nos reunimos para, entre um gole e outro de cerveja e um pratinho e outro de tremoço e de fatias de salaminho a título de tira-gosto, “filosofar” e “salvar o mundo” (pelo menos em nossos delírios etílicos).
“Em meros 13 milênios (um quase nada em relação ao tempo universal), o homem deu um salto notável das cavernas às viagens espaciais”, acentuou o Marcelo, que em tudo o que diz dá um jeito de inserir algum dado histórico, seja qual for. E não é de se estranhar quando se sabe que ele é estudante de História, em uma das faculdades da cidade.
Da minha parte, aduzi que, amiúde, futurólogos avançam previsões mirabolantes, que mais parecem insanos delírios, tamanha é a ousadia do que prevêem. E, ainda assim, a maior parte dessas projeções do futuro se apequena e se torna modestíssima face ao que, de fato, é conseguido. “Isto aconteceu, por exemplo, com Júlio Verne. Quando o escritor francês previu a construção de um submarino movido a energia nuclear, numa época em que os mais íntimos segredos do átomo sequer haviam sido desvendados, pessoas ditas de bom-senso torceram o nariz. Disseram que a previsão não passava de inútil fantasia. Era, pelo menos, o que objetivamente parecia. Passado menos de um século, todavia, isso se tornou real quando, em 1954, os Estados Unidos lançaram ao mar o primeiro submarino nuclear da história que, além de tudo, tinha o nome dado por Júlio Verne à sua embarcação: Nautilus. Hoje, o insólito submergível do capitão Nemo não somente é uma realidade, mas ultrapassou, em muito, a mais ousada fantasia do romancista”, disse, em tom pedante, em defesa da minha tese..
E voltei à carga: “O mesmo vale para as viagens à Lua, igualmente previstas pelo romancista francês. Como se vê, o homem continua surpreendendo a ele mesmo, à medida que se conscientiza do seu potencial (que beira o infinito). Nem sempre, pois, os chamados futurólogos são maníacos delirantes, a criar disparates, ou desocupados, que desperdiçam tempo prevendo bobagens. Na maioria das vezes, as maravilhas que prevêem se concretizam de forma muito mais surpreendente do que ousaram prever”.
Marcão, por seu turno, lembrou que Arthur Clarck, no fim dos anos 70 do século passado, traçou um panorama a respeito dos avanços da ciência, em que relacionou as conquistas da tecnologia somente no período iniciado em 1800. Lembrou as descobertas que revolucionaram o mundo nos transportes, nas comunicações, na mecânica, na química, na biologia e na física, entre outras tantas disciplinas.
A partir desse levantamento, fez várias extrapolações para o futuro. Contudo, apenas esboçou, timidamente, os benefícios que uma nova disciplina (que então mal começava a ser estruturada) poderia proporcionar para a humanidade: a Engenharia Genética. Na ocasião, as previsões de Clarck foram recebidas (como seria de se esperar) com ceticismo, tanto pela comunidade científica, quanto pelo público. A maioria leiga encarou os prognósticos como “mera curiosidade”, nada mais.
E o Marcão, não contente com a informação que deu, acrescentou detalhes. “Entre outras coisas, Clarck afirmou que a transformação artificial de organismos vivos era factível. Fez, todavia, uma prudente ressalva. Disse que isso ocorreria ‘apenas em futuro bastante remoto’. Previu que os genes de animais viriam a ser manipulados, para a criação de novas espécies. Prudentemente, porém, disse, também, que isso seria possível somente por volta de 2030”.
Resolvi mostrar que havia lido as declarações de Clarck e lembrei que ele sabia que alguma coisa, nesse sentido, já estava sendo tentada por alguns biólogos. “Mas não poderia adivinhar que no mesmo período em que fez suas previsões futurísticas, alguns cientistas já haviam criado, mediante manipulação genética, uma nova raça de animal. Foi na Fazenda El Peludo, na província de Buenos Aires, na Argentina. Um veterinário local conseguiu desenvolver um minipônei, do tamanho de um cão de porte médio, com longevidade que era o dobro da dos cavalos comuns”, aduzi, pois havia lido sobre essa experiência na revista “Enciclopédia Ilustrada”.
Não me contive, e voltei à carga, crente que estava abafando: “Hoje, a despeito de agirem com grande cautela, em um campo cheio de mistérios e de segredos, os cientistas já têm como reproduzir seres vivos a partir de qualquer célula de seu organismo (e não apenas das sexuais). Uma vacina contra a hepatite B, por exemplo, foi elaborada por esse método. E os avanços não param de acontecer. A clonagem de animais é uma realidade. E a de seres humanos é potencialmente possível (embora eticamente não desejável). Pesquisas com células-tronco são bastante promissoras. Vacas minúsculas, de poucos centímetros de altura e com produtividade média de 3,5 litros de leite por dia, já existem. Outras, de tamanho gigantesco, capazes de produzir 40% a mais de carne do que as de porte normal, foram desenvolvidas mediante simples tratamento hormonal”.
O Zito, que até então havia ficado calado, e que tinha manias de sociólogo, interveio na conversa e disse, o que todos acharam que foram palavras bastante sensatas: “O que se espera é que esses avanços da Engenharia Genética possam ser compartilhados por toda a humanidade, e não apenas por pequenos e poderosos grupos ou por países que contem com mais recursos, como Estados Unidos, Japão e Alemanha. Que possam servir de meios para erradicar, por exemplo, doenças hoje consideradas incuráveis e, principalmente, a fome e a miséria no mundo. Que esse salto tecnológico jamais se transforme em mais uma forma de dominação do rico sobre o pobre, do forte sobre o fraco. Porque, se há um campo, no qual o homem pouco evoluiu (e, provavelmente, até regrediu), este é o da ética”.
Nisso, um mendigo aproximou-se da mesa onde se desenvolvia nossa conferência de cúpula para salvar o mundo, de olho, claro, no prato de salaminho. Zito, que acabara de fazer veemente defesa dos pobres, disse, revoltado: “Sai pra lá, cara!”. E gritou para o garçom: “Tire esse ligeira daqui! Esse bar está ficando uma merda! Entra quem quer!”.
Aproveitei a deixa para dar uma de moralista: “A solidariedade está, mesmo, em baixa. Cada vez mais dá lugar à cobiça e ao preconceito”. E, olhando de viés para o Zito, arrematei: “Algumas pessoas, ao que parece, se esqueceram que precisam umas das outras e que, sozinhas, não são ninguém. Não querem se dar conta de que a razão e a fonte da sua sobrevivência estão no convívio justo, harmonioso, solidário, cooperativo e constante com seus parceiros de espécie”.
“Belo discurso, Pedrão”, Zito respondeu, entre irônico e irritado. “Leva ele para casa!”, acrescentou, referindo-se ao mendigo e com cara de pouco amigo. O incidente propiciou-me uma reflexão final, antes que nos dispersássemos, dado o adiantado da hora e já pensando nas desculpas que daríamos às nossas respectivas esposas. “Não há porque não confiar no homem. Gerações, certamente, vão se suceder, até que se promova a indispensável revolução de consciências. Injustiças, violências, contradições e mortes inúteis e desnecessárias deverão ocorrer ainda, em grande profusão. Mas todo o aprendizado do homo sapiens, em termos de comportamento, deu-se por processos traumáticos. Dos traumas, erros e acertos, porém, nasceram as civilizações. Felizmente, há, também, quem pense como Horace Mann, que dizia ‘tenho vergonha de morrer enquanto não tiver conquistado alguma vitória para a humanidade’”.
Lá no fundinho da consciência, no entanto, uma voz incômoda e insistente me desafiava: “Por que não dar o exemplo e não oferecer todo o prato de salaminho ao mendigo, que tanto o deseja?” Para aliviar o remorso, fiz mais do que isso. Pedi ao garçom que fizesse o maior e melhor sanduíche da casa para o infeliz que interrompera nossas inúteis reflexões. E saí do bar com uma certeza (que talvez não fosse mais do que mero desejo): ainda há esperança... Será?!!!

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