Friday, September 21, 2007

Porque escrevemos


Pedro J. Bondaczuk


A memória é uma das faculdades mais notáveis do “homo sapiens” – que Edgar Morin, certamente em um momento de azedume face ao comportamento social da maioria, chamou, não sem razão, de “homo demens” – e, simultaneamente, das mais frágeis. Registra, por exemplo, fatos banais, sem qualquer significado especial e deixa de registrar acontecimentos marcantes para a humanidade. Daí a necessidade de registros escritos, de arquivos, de livros, de jornais, etc.
Quando se trata de lembrar méritos alheios, então, é uma tragédia. Escritores e jornalistas, com trajetórias profissionais brilhantes, acabam, invariavelmente, esquecidos, tão logo encerrem a carreira, ou quando, por qualquer razão, deixem o palco principal dos acontecimentos, como se nada do que fizeram tivesse o mínimo valor. Todos, é mister frisar, estamos sujeitos a esse absurdo esquecimento. Da mesma forma que agimos em relação ao próximo, vão agir em relação a nós. Somos “especiais” somente para nós mesmos, por maiores que forem os nossos méritos.
Há intelectuais que nos legam obras impecáveis, sob todos os aspectos (tanto de forma quanto de conteúdo), reconhecidos em vida, mas que, tão logo morrem, passado aquele instante inicial de choque, de comoção, que a notícia de sua morte causa, são ignorados. E nunca mais se fala deles. E, quando se fala, quase sempre, é para citar algum fato que, no entender de muitos críticos “gratuitos”, lhes seja desabonador. Foi o que aconteceu, recentemente, com o escritor e jornalista (posto que não formado em jornalismo, mas que exerceu função jornalística, a de cronista, com muito talento e dignidade), Fernando Tavares Sabino.
Por anos e mais anos, essa magnífica figura humana contou com o reconhecimento quase unânime de crítica e de público, pela simplicidade e profundidade dos seus textos, saborosos e de fino humor. Teve exaltado seu talento ímpar para extrair do cotidiano, aparentemente banal, o lado pitoresco e poético. Quantas lições de vida nos deixou em seus textos coloquiais, quase uma conversa informal e descontraída de fim de tarde entre amigos, tendo por matéria-prima fatos e personagens obscuros do dia-a-dia!
Todavia, irritou os maldosos, os mal-humorados, os amargos, os derrotistas e néscios ao se propor a emprestar sua aptidão a uma ex-ministra da Economia (pasta que voltou a ser rebatizada de Ministério da Fazenda), execrada por milhões de brasileiros desde que tomou a iniciativa de “confiscar” a poupança da população. Subitamente, em determinados círculos, todos os seus méritos pessoais e profissionais foram esquecidos. Como se ele fosse o “confiscador” do dinheiro alheio, o que, evidentemente, não foi.
A partir de então, sempre que o nome de Fernando Sabino vinha à baila, invariavelmente esses infelizes “árbitros do comportamento” – que não vigiam sequer os próprios atos, mas agem com severidade extrema em relação aos dos outros – lembravam, sempre com indisfarçável toque de malícia e de escândalo: “não foi quem escreveu a biografia da Zélia?”. Grande crime que ele cometeu!!! Ora, ora, ora!!!
A morte desse exímio estilista do texto foi, sim, uma perda irreparável para a literatura e para o jornalismo (já que a crônica é uma espécie de ponte entre as duas atividades)! Seus méritos têm, sim, que ser reconhecidos! Seus textos têm, sim, que ser lidos, analisados e (se possível) imitados, por suas virtudes!
Fernando Sabino foi, sobretudo, “cortês” com seus leitores. Afinal, o escritor francês Jules Renard, membro da Academia Goncourt, falecido em 1910, afirmou, em determinada ocasião: “A clareza é a cortesia do homem de letras”. E esta foi sempre uma das maiores virtudes do (já saudoso) escritor mineiro.
Tudo isso me leva de novo a uma indagação, que faço há anos, cuja resposta conclusiva ainda não encontrei: “Por que escrevemos?”. Para ganhar dinheiro? Bobagem. Salvo raros fenômenos editoriais, como Paulo Coelho e Jorge Amado, pouquíssimos intelectuais (dá para contar nos dedos e de uma só mão) conseguem sobreviver apenas de textos. Vaidade? Também não! Há outras formas, mais eficazes e menos cansativas e dispendiosas, de “massagearmos” nosso ego. Estou mais propenso a acreditar que escrevemos por pura generosidade.
Reitero o que afirmei a esse propósito na minha crônica desta semana do portal Planeta News, do qual tenho a honra de ser cronista. Ou seja, que “escrevo para transmitir às outras pessoas as experiências que tive, com a generosidade de alguém disposto a doar algo de pessoal e que lhe é bastante precioso, a indivíduos que não conheço e com os quais provavelmente jamais terei qualquer espécie de contato. O que faço, diariamente, em meus diários e especialmente nas crônicas, é um streaptease emocional. Desnudo-me perante estranhos, apesar do pudor de me mostrar por inteiro, com minhas escassas virtudes e múltiplos defeitos”.
E mais: “O que se esconde por trás desse processo? Vaidade? Ânsia de conquistar a imortalidade e sobreviver na memória dos pósteros? Ingenuidade? Despudor? Talvez um pouco de tudo isso e muito mais”. Milan Kundera, em seu “Livro do Riso e do Esquecimento”, tem outra explicação, igualmente válida, para o ato de escrever: “Nós escrevemos livros porque nossos filhos se desinteressam de nós. Nós nos dirigimos ao mundo anônimo porque nossa mulher tapa os ouvidos quando falamos”.
Pode ser! Prefiro, porém, a versão da generosidade, que é muito mais simpática e mais parecida com a verdade. E, nesse aspecto, raros escritores foram mais generosos do que esse simpático mineiro de Belo Horizonte, que aos 13 anos de idade publicou seu primeiro texto na revista “Argus”, da polícia de Minas Gerais; que aos 18 lançou seu primeiro livro (“Os grilos não cantam mais”), de tamanha qualidade, que impressionou o então já mítico Mário de Andrade, que passou a se corresponder com ele; que nos legou (sem exagero) alguns milhares de crônicas, com inestimáveis lições de vida.
Fernando Sabino “partiu”, na véspera do seu aniversário, num 11 de outubro. Seu legado literário, no entanto, está aí, para deleite de estudantes e profissionais do texto e, sobretudo, das pessoas sensíveis e inteligentes. Quem de fato tiver inteligência, saberá “saborear” o que escreveu. Quem não... que aceite, sem se ofender, o merecido rótulo de “homo demens”, impingido por Edgar Morin.

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