Thursday, September 27, 2007

Descoberta do cotidiano




Pedro J. Bondaczuk


A cada novo amanhecer, descubro o cotidiano. Embora, para os mais desatentos, um dia se pareça rigorosamente com outro (especialmente para os ociosos e os entediados), eles nunca são iguais. Podem, até, ser semelhantes, parecidos ou coisa que o valha. Mas cada um deles tem o seu diferencial, para melhor ou para pior. Basta que atentemos para as diferenças e principalmente para as nuances. Alguns, trazem-nos alegrias surpreendentes. Outros... protagonizam alguma mágoa, algum fracasso, algum tropeço ou até mesmo alguma tragédia. Estas, todavia, (felizmente) também passam, por piores que sejam suas seqüelas e/ou conseqüências.
Tenho um fascínio especial pelo mar. A razão? Não sei explicar. Talvez seja uma ligação atávica, ancestral, adormecida no inconsciente. Afinal, alguns cientistas dizem que a vida surgiu nos oceanos. Claro que é uma especulação. Nenhum deles esteve lá, no princípio dos tempos, para testemunhar essa gênese. De qualquer forma, nascemos em meio líquido, que simula o mar. Passamos nossos primeiros nove meses de vida nadando, na bolsa amniótica que nos protege e possibilita nossa formação e desenvolvimento. Somos pois, na origem, seres marinhos.
É possível, porém, que esse meu fascínio pelo mar tenha sua origem na passagem da infância para a adolescência, na ávida leitura de livros como “Dois anos ao pé do mastro”, “A Ilha do Tesouro”, “Aventura nos Mares do Sul”, “Robinson Crusué”, “O Velho e o Mar” e essa incrível obra-prima de Herman Melville, que é “Moby Dick”. Sempre que posso (o que é cada vez mais raro), desço para o litoral. Quando me é possível, viajo para o Rio de Janeiro, cidade que é a minha paixão e onde passei os seis melhores meses da minha vida, de sonhos e de fantasias, quando lá morei.
A maioria das vezes, no entanto, meu destino são as praias de Caraguatatuba e, principalmente, de Ubatuba. Nestas, inúmeras vezes repeti o gesto do Padre José de Anchieta, de escrever poemas na areia. Alguns, tive o capricho de copiar em papel e tenho-os até hoje. A maioria, contudo, só as ondas testemunharam, absorveram e apagaram. Eram bons? Eram maus? Eram sofríveis? Nunca saberei. Ninguém saberá.
Freqüentei, em tempos menos bicudos, as lindas praias do Nordeste, de Salvador, de Maceió, do Recife e tantas outras. Nunca adotei, nessas ocasiões, o jeitão típico do turista, até para a minha segurança, mas, principalmente, para que pudesse gozar das delícias dessas praias com privacidade, sem ser incomodado por ninguém. Em meus passeios lentos e sem destino, não levo comigo nada de valor, que possa despertar a cobiça de trombadinhas e de trombadões, como máquina fotográfica, celular, Ipod ou qualquer outra coisa do gênero. Nem mesmo relógio de pulso uso nessas oportunidades.
Pude testemunhar, entre aterrorizado e divertido, vários arrastões, no Rio de Janeiro, notadamente em Copacabana, Ipanema e Leblon. Não fui vítima de nenhum, jamais. Os “gafanhotos” nunca viram, comigo, nada que lhes despertasse a atenção e a cobiça: nem máquina fotográfica, nem celular, nem Ipod, nem mesmo um reles e vagabundo relógio de pulso. Mas é assustadora a horda que avança sobre os bens dos incautos banhistas. Nem mesmo toalhas, gorros, bonés e outras quinquilharias de valor ínfimo eles perdoam.
O leitor já presenciou, alguma vez, um ataque de gafanhotos? Eu já! Foi em minha terra natal, em Horizontina, no Rio Grande do Sul. Eu tinha, na ocasião, apenas cinco anos de idade, mas nunca mais esqueci aquele espetáculo assustador. Foi na entrada do verão de 1948. Eu estava na varanda da minha casa, quando, subitamente, o céu escureceu. Pensei que fosse chover. Mas não era chuva. Não tardou para que eu visse centenas de empregados de sítios e fazendas ao redor, portando tochas, batendo panelas, latas e tudo o que fizesse barulho, correndo, esbaforidos, de um lado para o outro, no afã de espantar os milhões (sem nenhum exagero) de insetos que se precipitavam sobre as plantas.
A densa nuvem era proveniente da margem argentina do Rio Uruguai. Em poucos minutos, as lavouras de milho, de trigo, de soja e outras tantas se viram reduzidas a meros restos. Quem tinha alimentos estocados em celeiros se deu bem. Quem não tinha... precisou recorrer a vizinhos e ao governo. Os gafanhotos arrasaram tudo, absolutamente tudo. E, da forma que vieram, se foram, deixando para trás o caos e a desolação. Aquele foi um ano horrível, de privações e de desespero, para os agricultores da região.
Os participantes de arrastões me lembram esses vorazes e daninhos insetos, praga milenar que assola os povos há milênios, sem que haja uma forma eficaz de se defender dela. Os trombadinhas e trombadões surgem, de repente, na praia, vindos de vários lugares diferentes, surrupiam, em questão de minutos, tudo o que podem, de surpresa, sem dar nenhum tempo de reação às vítimas, e se dispersam por becos, vielas, ruas e avenidas, em restaurantes e botecos dos arredores, quando a polícia pelo menos esboça um princípio de ação.
Dei voltas e mais voltas neste meu texto apenas para falar da descoberta do cotidiano. É que um assunto puxa outro e, quando nos damos conta, não falamos nada do tema que queríamos abordar. Afinal, as conversas entre amigos não são sempre assim? Claro que são!
Sim, descubro o cotidiano a cada manhã, atento aos seus detalhes, até na condição de escritor. Explico: é nele que busco os temas sobre os quais vou escrever. É o dia-a-dia, aparentemente rotineiro e banal, que me abastece de assunto, por exemplo, para as dez crônicas semanais que preciso produzir, por força de compromissos contratuais que assumi.
O tema em questão me foi suscitado por um texto de Antonio Cândido, escrito quando eu tinha apenas um ano e meio de idade, em 16 de julho de 1944, publicado no jornal Folha da Manhã, que tive a feliz oportunidade de ler apenas hoje. A palavra escrita tem essa vantagem sobre a comunicação através de outros meios, principalmente a oral: a da permanência. A referida crônica tem o título “Perto do Coração Selvagem”, e consta do livro “Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, comemorativo ao 80º aniversário desse tradicional jornal paulistano.
Em determinado trecho, Antonio Cândido constata: “A descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre uma transfiguração que abre caminhos para mundos novos”. E não é?! Entre tantas coisas novas que descobri neste dia, que não foram poucas, (e para cujo enredo dei minha modesta, diria ínfima, contribuição) está a “descoberta” desse instigante texto, que enriqueceu um pouquinho mais meu acervo de conhecimentos. Valeu a pena, portanto. Sempre vale. Tudo vale, “se a alma não é pequena”, diria Fernando Pessoa.

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