Tuesday, September 04, 2007

À margem da edição


Pedro J. Bondaczuk

O artista é o sujeito que lança mão apenas da imaginação para criar obras nascidas exclusivamente da sua fantasia. Já o cientista se atém ao concreto, ao comprovável, àquilo que pode ser racionalizado e repetido quantas vezes se desejar, desde que certas regras sejam rigorosamente respeitadas, certo? Errado!

O que entendemos por ciência não é mais do que fruto da especulação. O que hoje é tido como dogma incontestável, amanhã pode estar totalmente ultrapassado por novas "descobertas", que por sua vez talvez sejam superadas por outras, e mais outras e mais outras, em um número de vezes que pode se perder no infinito.

O artista, porém, e em especial o poeta (mas também o cronista, o contista, o romancista, o ensaísta etc.) desenvolve, com anos de exercício, a aptidão de explorar sutilmente o subconsciente à cata de emoções que lhe sirvam de matéria-prima para maravilhosas obras de arte. Sons, imagens, odores, sensações agradáveis ditadas pelos cinco sentidos, são transformados por esses criadores (que valorizam e dão nobreza à vida humana) em melodias, telas, esculturas, palavras que formam metáforas bem ajustadas e harmoniosas. Com o talento de que são dotados, nos transmitem suas emoções, às quais agregamos as nossas, ditadas por nossa própria experiência pessoal.

Todos temos, a rigor, em nós, um artista adormecido, embora muitas vezes não pareça que seja assim. Ocorre que alguns sufocam esse pendor natural, voltados que estão para coisas aparentemente mais importantes, mais "sérias" e que, na verdade, quando submetidas a uma análise lógica mínima, se revelam supérfluas, triviais, fantasiosas e absolutamente dispensáveis. Só a arte dá dimensões divinas ao ser humano. É por seu intermédio que ele verdadeiramente se revela em toda a sua grandeza e transcendência.

Esse imenso preâmbulo, esse enorme “nariz de cera” (e aí está a vantagem de redigir um texto não-jornalístico) vem a propósito de abordar a experiência singular que tenho o privilégio de viver, há já 17 meses, de ser o editor do Literário, sábia criação da direção do Comunique-se, que abre espaço a jornalistas de todo o País para que mostrem outro lado do seu talento: o de escritores. O de artistas que enxergam além da realidade e “criam” um mundo, paralelo ao real, mas que extrapola a realidade, pintado com as tintas do imaginário.

Quando fui convidado a assumir essa tarefa, de tamanha responsabilidade, assustei-me. Embora com décadas “de janela”, como editor, e uma “quilometragem” imensa em literatura, como leitor e produtor de textos (que ascendem a dezenas de milhares), cheguei a duvidar que fosse capaz de encarar tamanho desafio. Antes de responder ao convite, resolvi consultar colegas jornalistas e amigos que considero de muito bom-senso sobre se deveria, ou não, aceitar a proposta.

A tônica geral dos comentários foi esta: “Sai dessa, Pedrão! Imagina! Jornalista não sabe escrever, a não ser utilizando fórmulas pré-estabelecidas, preso que está aos tais manuais de redação. Além disso, está acostumado a sempre ver só o lado ruim, vicioso e corrupto da vida. Jornalistas são pessimistas por natureza. Vêem catástrofes medonhas em tudo, até numa simples queda de bicicleta!”. Apesar dessas “recomendações”, decidi seguir meus instintos e encarar o desafio. E, para minha felicidade, constato que meus conselheiros estavam redondamente enganados! Generalizaram e descambaram para a burrice. Deveriam atentar para o que disse Nelson Rodrigues, ao constatar que “toda generalização é burra!”. E como é.

Editei e encaminhei para publicação, nesse período, mais de 1.500 textos. A grande maioria constituída de trabalhos excepcionais, e em praticamente todos os gêneros: crônicas, ensaios, poesias, peças teatrais, contos e até um romance inteiro, publicado em capítulos semanais. O leitor do Comunique-se, portanto, tem o privilégio do acesso a textos de altíssima qualidade literária (basta acessar os arquivos para verificar que não exagero) e de graça. Todos, absolutamente todos, obras de jornalistas!

De início, contávamos com um quadro de 25 colunistas semanais. Muitos, todavia, em razão de motivos os mais diversos – a maioria em virtude desse compromisso conflitar com outros, de caráter profissional – “pularam” do barco. Perderam o privilégio de um espaço nobre e único, com essas características, na internet. Outros, porém, os substituíram, sem que a qualidade decrescesse. Ademais, publicamos vários trabalhos de mais de 300 colaboradores não-fixos, 30% dos quais estudantes de jornalismo. Alguns desses textos (se não a maioria) são marcantes! São muito bem escritos e, sobretudo, originais.

Recebo, semanalmente, por volta de uma centena de colaborações, de todo o País, cada uma melhor do que a outra. Até o momento, um percentual baixíssimo, coisa em torno de menos de 10%, foi recusado, por “falta de qualidade literária”. Claro que alguns textos precisaram ser editados, para corrigir alguns erros – notadamente de estilo, caracterizado, principalmente, pela mistura de tratamento “tu” e “você” e alguns de concordância, de pontuação, de acentuação e de crase – antes de serem programados para publicação. Afinal, esta é a principal tarefa do editor (posto que não a única), não é mesmo?

Houve quem reclamasse das mudanças efetuadas no que escreveram, o que me deixou pasmo. Como jornalistas, essas pessoas deveriam saber que nos grandes jornais, raramente, são publicadas matérias rigorosamente como são escritas. Nas editoras, livros passam, via de regra, por profundas revisões. Se fossem divulgados exatamente como são redigidos... seria um Deus nos acuda! Tanto os redatores, quanto os editores, em pouco tempo, seriam demitidos! Os textos são submetidos, sempre, invariavelmente, a um copy-desk, para se adequarem tanto ao espaço que o editor dispõe, quanto à qualidade exigida. Mas foram poucos, pouquíssimos, mínimos, os problemas dessa ordem.

Só tenho uma queixa, nesses 17 meses em que tenho o privilégio de ser o editor do “Literário”: a pequena quantidade de comentários nos textos postados. Afinal, a melhor característica da internet é a possibilidade de se estabelecer interatividade entre autor e leitor. Mais do que isso, porém, fico furioso, possesso até, quando algum participante desse espaço é tratado de forma desrespeitosa. Quem tem acesso a essas obras deveria, isto sim, se conscientizar do privilégio que tem. Afinal, recebe, absolutamente de graça, produções de alta qualidade que, de outra forma, teria que pagar (e muito) para poder ler.

A grande maioria dos participantes é de escritores consagrados e, simultaneamente, jornalistas vencedores. São pessoas que, generosamente, “doam” a quem quiser o fruto do seu talento. O mínimo que merecem, portanto, é respeito. Claro que críticas bem-fundamentadas e comentários educados são sempre bem-vindos. Servem como balizadores, como referenciais, como parâmetros para os autores. Fico frustradíssimo quando algum texto meu passa em “brancas nuvens”. Minha decepção, porém, é maior, muitíssimo maior quando os dos nossos ilustres colunistas, e dos nossos generosos colaboradores, não são comentados.

Noam Chomsky constatou, em um artigo publicado há algum tempo nos Estados Unidos, que “um grande escritor ou pensador pode modificar o caráter da língua e enriquecer seus meios de expressão sem afetar a estrutura gramatical”. É isso que aqueles que dão vida ao Literário fazem. Ou seja, modificam (para melhor, claro) o caráter do idioma e enriquecem os meios de expressão com o seu talento, sua inteligência, sua percepção e, sobretudo, sua generosidade. Por isso, merecem todo o nosso prestígio e nossa total consideração, se não nossa comovida gratidão!

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