Thursday, August 30, 2007

Um trem para as estrelas


Pedro J. Bondaczuk


O trem tem grande importância em minha vida. Não tanto como meio de transporte de média e longa distância, pois para esse fim não troco o avião por nenhum outro. Mas as velhas locomotivas a carvão, soltando fagulhas e fumaça pelo caminho, com seu apito lamuriento; os vagões de madeira de segunda classe, abarrotados de pessoas cansadas e sonolentas e de malas, sacolas e embrulhos atravancando os corredores e as bucólicas estações interioranas estão marcados, de forma indelével, na minha memória.

Foi em uma composição desse tipo que deixei para sempre minha terra natal, a distante Horizontina, no Rio Grande do Sul, há 57 anos, quando meus pais vieram para São Paulo para tentar melhor sorte. Foi, também, em trens de subúrbio da antiga Santos a Jundiaí, mais modernos e suntuosos, de aço, com bancos estofados e movidos a eletricidade, que pude conhecer pessoas humildes, observar seus comportamentos e feições, captar pedaços de suas conversas, fixar tipos e criar, dessa forma, os personagens dos meus contos urbanos, que têm vida por terem sido transplantados diretamente da realidade para a ficção.

Inúmeras vezes, em seus trilhos de aço, fiz verdadeiras "viagens para as estrelas", parodiando um filme nacional de relativo sucesso que tem esse nome. Muitos dos meus poemas foram escritos entre sacolejos e balanços desses veículos, com o corpo no seu interior; com os sentidos ligados nas imagens, cheiros e sons; mas com a cabeça perdida nas nuvens, no espaço, no éter infinito, entre cometas velozes, planetas, estrelas, galáxias e buracos negros.

Lembro-me que, quando adolescente, em meus fins de semana, ou em ocasiões de festa, como o Natal e o Ano Novo, costumava sair de casa logo cedo, rumo à estação de São Caetano, onde residia. Comprava uma passagem para o ponto final do subúrbio, ora para Paranapiacaba da Serra, ora para Francisco Morato. Chegado ao destino, descia, dava uma volta na praça, parava em algum bar para um café ou sanduíche, e repetia a dose, em sentido inverso.

Nunca disse à família onde ia nessas ocasiões, deixando pairar no ar uma incômoda suspeita da sua parte. Meus pais não entenderiam... Houve dias de fazer o trajeto por dez vezes, ficando por doze horas no interior de vagões. Claro, com os olhos bem abertos e os ouvidos atentos a todas as conversas, murmúrios, risadas, choros de criança etc. "Diversão tola", dirão, certamente, alguns. Pode ser. Mas era a forma que eu conhecia de observar pessoas sem que estas reclamassem ou sequer se dessem conta que eram observadas. Eram outros tempos, todavia, mais amenos e sem os riscos de assaltos e acidentes de hoje, sem a violência que nos atormenta e ameaça.

Os trens são, sobretudo, poéticos. Vários dos monstros sagrados da poesia mundial escreveram sobre e dentro deles. E pensar que é um veículo historicamente tão novo, tão recente, mais "jovem" do que o Brasil! A primeira locomotiva foi inventada na Inglaterra em 1825, por George Stephenson. Completa, portanto, neste 2006, 181 anos.

Em nosso País é mais recente ainda. Foi em 1854 que o visionário – um dos brasileiros mais extraordinários e pouco lembrados que já existiram – Irineu Evangelista de Sousa, o Barão de Mauá, inaugurou a primeira linha, ligando o Rio de Janeiro a Petrópolis, estrada-de-ferro posteriormente incorporada pela Leopoldina Railway.

Esse ousado empresário, que em seu tempo era um dos três homens mais ricos do mundo, participou de outros empreendimentos ferroviários, que embora não caibam nesta crônica, sou tentado a citar. Um foi a construção, em 1855, da Recife and São Francisco Railway Company. No ano seguinte, financiou a Santos a São Paulo, transferida depois para a São Paulo Railway. Não se satisfez.

Em 1858, bancou a Estrada de Ferro Central do Brasil, cortando o Vale do Paraíba, ligando a então capital do País à Paulicéia. Em 1860, contribuiu para que nascesse a Bahia and São Francisco Railway Company. Grande brasileiro esse Barão de Mauá! Foi daqueles raros que fazem e não se limitam a criticar políticos, governos e o próprio povo a que pertence.

Dói no coração, a alguém tão ligado aos trens, ver a situação de petição de miséria de virtualmente todas as ferrovias do País, mesmo após a sua privatização, colocada entre nós como verdadeira panacéia para todos os males. Nesse aspecto, também estamos na contramão da história.

Afinal, são os velozes, modernos, seguros e confortáveis TGVs que circulam no fantástico (e falido) Eurotúnel, que faz a ligação, por baixo do Canal da Mancha, entre a França e a Grã-Bretanha. Dá uma inveja enorme quando vejo os bólidos, que chegam a trafegar a até 400 quilômetros horários sobre trilhos, no Japão e em muitas partes da Europa, como a Alemanha e a França.

Em todos os países de Primeiro Mundo (e nos mais sensatos do Terceiro), esse meio de transporte é cuidado, preservado, modernizado e ampliado. Enquanto isso, nossos trens e estações vão se transformando em nada mais do que sucata. São cada vez mais inseguros, raros e decadentes. Menos, evidentemente, o "expresso para as estrelas" das minhas lembranças de menino...

No comments: