Friday, August 31, 2007

Hora da verdade


Pedro J. Bondaczuk

O ensaísta francês Stendhal (e para quem não se lembra, ou não sabe, este era o pseudônimo de Marie Henri Beyle, nascido em Grenoble, autor de um dos grandes clássicos da literatura mundial, “O Vermelho e o Negro”), constatou que muitas pessoas – eu diria a maioria – se deixam enterrar vivas, por jamais dizerem a que vieram ao mundo. Não trabalham e, quando o fazem, se contentam com tarefas rotineiras, mecânicas, automáticas e nada criativas, como as executadas pelo célebre Carlitos no filme “Tempos Modernos”. Ou não estudam e, quando o fazem, não se empenham a fundo para, de fato, aprender. Limitam-se a ficar de olho somente no diploma, como se este fosse a sua redenção. Enfim, não fazem nada que preste aos outros, nem às próprias famílias. Vegetam, vida afora, como se fossem meros passageiros da espaçonave Terra. Não são! Ninguém é, pois esta não os comporta. Todos, indistintamente, fazendo ou não nossa parte, somos tripulantes dessa nave frágil e misteriosa, que singra o espaço com destino que ignoramos qual seja.

O mais estranho de tudo é que muitas dessas pessoas são privilegiadas pela natureza, dotadas de rara inteligência, ou de força descomunal, ou de energia fora do comum, ou de talentos que poucos têm, mas parecem sequer se dar conta disso. Ou, quando se dão, desperdiçam esses dotes em atividades inúteis, vazias, sem sentido. Alguns, por exemplo, aplicam sua excepcional inteligência na tarefa inócua da acumulação de bens. Passam por cima de tudo e de todos na ânsia de “ter”. Mas não o suficiente para a sobrevivência ou a manutenção da família, o que, até, seria admissível. De forma obsessiva, doentia, avarenta e mesquinha, ajuntam mais, muito mais do que o necessário para viver e a própria capacidade de gastar.

Há os que, na hora da verdade, diante da iminência da morte, se dão conta da tolice que cometeram. Só que, na maioria dos casos, essa descoberta se revela tardia. Descobrem que desperdiçaram a vida por nada. Estes sempre estiveram enterrados vivos e nunca perceberam. Muitos, contudo, nem nesse momento extremo admitem, ou concluem, que cometeram esse fatal erro de avaliação.

Há, por outro lado, os que usam a força física com que foram dotados (e que um dia também decresce até se extinguir), ou a beleza (ilusória e que tem tempo contado) ou a energia (que igualmente se esgota) para oprimir, humilhar, agredir, dominar e se sobrepor aos que foram menos dotados pela natureza e que requerem sua ajuda e proteção e não sua arrogância e prepotência. Em geral, essas pessoas, ao ficarem velhas (quando ficam), são as que mais sofrem. Afinal, só lamenta uma grande perda quem teve o que perder.

Há muitas e muitas outras situações em que os envolvidos se enterram vivos. Enterram corações. Enterram cérebros. Enterram emoções. Enterram inteligências. Enterram talentos. Enterram todo o seu potencial e não conseguem, com sua atitude, mais do que rancores, ou ressentimentos, ou a ira alheia ou, quando muito, a piedade dos que os cercam. São perdedores, embora tivessem tudo para vencer.

Os vencedores, por seu turno, às vezes não são tão inteligentes, ou tão fortes, ou tão belos, ou tão enérgicos. São dotados, todavia, entre outras virtudes, de uma característica insuperável: o entusiasmo. São os que muitas vezes tardam a estabelecer objetivos, mas que, quando o fazem, nomeiam aqueles que sejam compatíveis com a sua capacidade e, sobretudo, factíveis. Além disso não se limitam a meramente querer que eles se concretizem: se empenham, a fundo, com cérebro, corpo e alma, na sua busca. E esbanjam, sobretudo, três palavrinhas, muito curtas, porém fundamentais: sim, não e oba.

A primeira, é de aceitação de tudo o que seja positivo, construtivo e sadio. A segunda, é de recusa dos maus sentimentos, más emoções e maus comportamentos, próprios e/ou alheios. E, finalmente, a terceira, utilizam para exprimir o encantamento, a alegria e o entusiasmo pelas vitórias conquistadas, por menores que sejam.

Os vencedores também experimentam inúmeros fracassos no meio caminho. Estão muito longe da perfeição e têm plena consciência disso. Mas fazem das próprias vulnerabilidades, fraquezas e deficiências armas poderosas para o sucesso. Honoré de Balzac, por exemplo, era uma pessoa extremamente perdulária. Vivia atolado em dívidas e, não raro, os credores entravam em sua casa e retiravam todos os seus móveis, em troca de suas dívidas. Por causa desse fator, no entanto, premido pelas circunstâncias, colocou o máximo de empenho no que sabia fazer de melhor: escrever. Endividado até a alma, escreveu, escreveu e escreveu furiosamente, com vigor e entusiasmo. E nos legou, entre tantas obras, os 35 volumes da “Comédia Humana”.

Fedor Dostoievski, por seu turno, era um jogador inveterado. Não podia ter dinheiro nas mãos que logo se dirigia a Montecarlo e lá deixava tudo o que havia ganhado com imenso sacrifício. Mas nunca usou sua desgraça e nem suas desventuras e defeitos pessoais como desculpas para não fazer nada. Recusou-se a se deixar enterrar vivo (mesmo quando foi enviado para um campo de trabalhos forçados na Sibéria). Com isso, legou à humanidade obras marcantes como “Crime e Castigo”, “Irmãos Karamazov” e “Recordação da Casa dos Mortos”, entre outras. Estes, e tantos outros, souberam vencer seus vícios, fraquezas e, principalmente, o desânimo (e a conseqüente tentação da apatia), com a poderosa, quase invencível arma do entusiasmo. E se eles puderam...

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