Pedro J. Bondaczuk
“Minha família anda longe,/com trajos de circunstância:/uns convertem-se em flores,/outros em pedra, água, líquen;/alguns, de tanta distância,/nem têm vestígios que indiquem/uma certa orientação...”. Estes versos, intimistas, sonoros, vibrantes (e sobretudo originais) são de Cecília Meirelles, cujo centenário de nascimento foi comemorado (discretamente, pois merecia muito mais pelo que representa para a Literatura Brasileira) em 2002.
Nascida no Estado do Rio de Janeiro, foi professora por vocação, dedicando-se, de corpo e alma, ao magistério, que exerceu com entusiasmo e com aplicação por longos anos, e poetisa por destino e missão, autora de uma volumosa, sólida e preciosa obra poética, de 23 livros de poesia (uma façanha no Brasil) e que só não foi mais extensa dada a sua morte prematura, aos 63 anos de idade, em 1964.
Aliás, tenho por essa escritora um carinho todo especial, marcado por uma circunstância bastante particular em minha vida. Meu primeiro trabalho jornalístico assinado, há 42 anos, em um jornal diário de Santo André, no Grande ABC, foi exatamente o seu necrológio, publicado em outubro de 1964.
Claro que gostaria de ter escrito, nessa minha estréia, outro tipo de texto a seu respeito, que não este, dada a minha apreciação (diria veneração) por seu estilo elegante e inovador e sua temática mística e profunda. Cecília abordou os temas que (por sua influência, não canso de afirmar e de reiterar) são os que sempre procurei explorar em minha já longa e acidentada carreira literária, marcada pela obscuridade (já que sempre fui visto como jornalista e não como escritor): a fugacidade do tempo, a precariedade das coisas, os mistérios e delírios do amor e as especulações sobre a eternidade, entre outros.
Preferia, portanto, na ocasião, ter podido abordar assuntos como o lançamento de um novo livro seu, que viria se somar à sua então já vasta e preciosa produção literária, por exemplo. Ou a conquista de mais um importante prêmio, dos tantos que Cecília conquistou. Talvez o Nobel, quem sabe, a exemplo de uma outra mestra, como ela, com destino, temática e forma de escrever que guardam mais semelhanças do que diferenças, no caso a chilena Lucila Godoy Alcayaga, conhecida mundialmente por seu pseudônimo, Gabriela Mistral, agraciada com essa tão cobiçada láurea em 1945.
Poderia ser, talvez, a cobertura de alguma homenagem prestada por seus inúmeros discípulos, em reconhecimento ao seu trabalho, o que não seria de se estranhar, dada sua exemplar dedicação ao magistério. Queria ter podido, enfim, abordar qualquer outra coisa, que não fosse a sua morte. O “destino” (ou, para ser mais coerente com o que acredito, o “acaso”), todavia, não quis que fosse assim. Coube-me a ingrata tarefa de estrear na grande imprensa com um texto pungente e comovido, relatando, exatamente, o seu “encantamento” (pois acredito, como Guimarães Rosa, que “o poeta nunca morre: fica encantado”).
Fui designado para escrever seu necrológio, conforme o editor-chefe do jornal me explicou, pela veneração que tinha por Cecília Meirelles. Ninguém, na redação, conhecia mais a seu respeito e sobre a sua obra, do que eu. E não por razões profissionais, mas puramente pelo prazer estético que a leitura dos seus versos me proporcionava (e, claro, ainda me proporciona). Sabia de cor dezenas e dezenas de seus poemas, que até hoje recito automaticamente, sem titubear, a despeito dos cada vez mais freqüentes lapsos de memória, frutos do meu envelhecimento. As circunstâncias, portanto, tornaram-nos “íntimos”, mesmo sem jamais termos nos encontrado uma única vez e, por conseqüência, nunca termos nos conhecido pessoalmente. Essa, por sinal, é uma das grandes frustrações da minha vida.
A obra de Cecília Meirelles caracteriza-se pela coerência, pela linearidade e pela uniformidade. Três constantes podem ser observadas em todas as suas poesias: o oceano, o espaço e a solidão. Seus versos (salvo raras exceções), são curtos, leves, com um ritmo suave e musical, onde as imagens, com uma riqueza luxuriante, tornam-nos extremamente acessíveis e claros, conduzindo o leitor a uma visualização imediata daquilo que a autora pretendeu transmitir.
Por causa dessa concisão, ela é considerada como a grande herdeira do Simbolismo dentro do movimento Modernista. Mais do que isso, é elo de ligação entre essas duas vertentes literárias, aparentemente antagônicas, uma ponte natural de uma escola para a outra. Apesar disso, seu primeiro livro, “Espectros”, publicado quando tinha somente 18 anos de idade (em 1917), é nitidamente de influência parnasiana.
Cinco anos depois, a partir de 1922, Cecília passou a integrar a chamada Corrente Espiritualista da poesia moderna. Ou seja, aderiu, e se tornou uma das principais expoentes, à ala católica do movimento modernista, que tinha nas revistas “Árvore Nova”, “Terra do Sol” e “Festa” seus veículos de divulgação por excelência.
A melhor definição para a passagem dessa fantástica poeta entre nós, porém, é ela própria que dá, nos versos finais do poema “Memória”, com que abrimos estas (saudosas) considerações: “Vejo as asas, sinto os passos/de meus anjos e palhaços,/numa ambígua trajetória/de que sou o espelho e a história./Murmuro para mim mesma:/”É tudo imaginação!”/Mas sei que tudo é memória...”
“Minha família anda longe,/com trajos de circunstância:/uns convertem-se em flores,/outros em pedra, água, líquen;/alguns, de tanta distância,/nem têm vestígios que indiquem/uma certa orientação...”. Estes versos, intimistas, sonoros, vibrantes (e sobretudo originais) são de Cecília Meirelles, cujo centenário de nascimento foi comemorado (discretamente, pois merecia muito mais pelo que representa para a Literatura Brasileira) em 2002.
Nascida no Estado do Rio de Janeiro, foi professora por vocação, dedicando-se, de corpo e alma, ao magistério, que exerceu com entusiasmo e com aplicação por longos anos, e poetisa por destino e missão, autora de uma volumosa, sólida e preciosa obra poética, de 23 livros de poesia (uma façanha no Brasil) e que só não foi mais extensa dada a sua morte prematura, aos 63 anos de idade, em 1964.
Aliás, tenho por essa escritora um carinho todo especial, marcado por uma circunstância bastante particular em minha vida. Meu primeiro trabalho jornalístico assinado, há 42 anos, em um jornal diário de Santo André, no Grande ABC, foi exatamente o seu necrológio, publicado em outubro de 1964.
Claro que gostaria de ter escrito, nessa minha estréia, outro tipo de texto a seu respeito, que não este, dada a minha apreciação (diria veneração) por seu estilo elegante e inovador e sua temática mística e profunda. Cecília abordou os temas que (por sua influência, não canso de afirmar e de reiterar) são os que sempre procurei explorar em minha já longa e acidentada carreira literária, marcada pela obscuridade (já que sempre fui visto como jornalista e não como escritor): a fugacidade do tempo, a precariedade das coisas, os mistérios e delírios do amor e as especulações sobre a eternidade, entre outros.
Preferia, portanto, na ocasião, ter podido abordar assuntos como o lançamento de um novo livro seu, que viria se somar à sua então já vasta e preciosa produção literária, por exemplo. Ou a conquista de mais um importante prêmio, dos tantos que Cecília conquistou. Talvez o Nobel, quem sabe, a exemplo de uma outra mestra, como ela, com destino, temática e forma de escrever que guardam mais semelhanças do que diferenças, no caso a chilena Lucila Godoy Alcayaga, conhecida mundialmente por seu pseudônimo, Gabriela Mistral, agraciada com essa tão cobiçada láurea em 1945.
Poderia ser, talvez, a cobertura de alguma homenagem prestada por seus inúmeros discípulos, em reconhecimento ao seu trabalho, o que não seria de se estranhar, dada sua exemplar dedicação ao magistério. Queria ter podido, enfim, abordar qualquer outra coisa, que não fosse a sua morte. O “destino” (ou, para ser mais coerente com o que acredito, o “acaso”), todavia, não quis que fosse assim. Coube-me a ingrata tarefa de estrear na grande imprensa com um texto pungente e comovido, relatando, exatamente, o seu “encantamento” (pois acredito, como Guimarães Rosa, que “o poeta nunca morre: fica encantado”).
Fui designado para escrever seu necrológio, conforme o editor-chefe do jornal me explicou, pela veneração que tinha por Cecília Meirelles. Ninguém, na redação, conhecia mais a seu respeito e sobre a sua obra, do que eu. E não por razões profissionais, mas puramente pelo prazer estético que a leitura dos seus versos me proporcionava (e, claro, ainda me proporciona). Sabia de cor dezenas e dezenas de seus poemas, que até hoje recito automaticamente, sem titubear, a despeito dos cada vez mais freqüentes lapsos de memória, frutos do meu envelhecimento. As circunstâncias, portanto, tornaram-nos “íntimos”, mesmo sem jamais termos nos encontrado uma única vez e, por conseqüência, nunca termos nos conhecido pessoalmente. Essa, por sinal, é uma das grandes frustrações da minha vida.
A obra de Cecília Meirelles caracteriza-se pela coerência, pela linearidade e pela uniformidade. Três constantes podem ser observadas em todas as suas poesias: o oceano, o espaço e a solidão. Seus versos (salvo raras exceções), são curtos, leves, com um ritmo suave e musical, onde as imagens, com uma riqueza luxuriante, tornam-nos extremamente acessíveis e claros, conduzindo o leitor a uma visualização imediata daquilo que a autora pretendeu transmitir.
Por causa dessa concisão, ela é considerada como a grande herdeira do Simbolismo dentro do movimento Modernista. Mais do que isso, é elo de ligação entre essas duas vertentes literárias, aparentemente antagônicas, uma ponte natural de uma escola para a outra. Apesar disso, seu primeiro livro, “Espectros”, publicado quando tinha somente 18 anos de idade (em 1917), é nitidamente de influência parnasiana.
Cinco anos depois, a partir de 1922, Cecília passou a integrar a chamada Corrente Espiritualista da poesia moderna. Ou seja, aderiu, e se tornou uma das principais expoentes, à ala católica do movimento modernista, que tinha nas revistas “Árvore Nova”, “Terra do Sol” e “Festa” seus veículos de divulgação por excelência.
A melhor definição para a passagem dessa fantástica poeta entre nós, porém, é ela própria que dá, nos versos finais do poema “Memória”, com que abrimos estas (saudosas) considerações: “Vejo as asas, sinto os passos/de meus anjos e palhaços,/numa ambígua trajetória/de que sou o espelho e a história./Murmuro para mim mesma:/”É tudo imaginação!”/Mas sei que tudo é memória...”
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