Monday, October 10, 2011







Pontes e abismos

Pedro J. Bondaczuk


O fundamental para o progresso de determinada sociedade (não importa qual) é a coesão. É o espírito de irrestrita cooperação para o alcance de um objetivo determinado. É a solidariedade. É o forte ajudando o mais fraco, em vez de pisoteá-lo e de se aproveitar dele. É a justiça, em seu significado estrito. A maioria das pessoas nutre este ideal na juventude que, inexplicavelmente, vai deixando pelo caminho à medida que amadurece.

Para que haja essa utópica coesão, todavia, todos os integrantes da sociedade, até por questão semântica, têm que ser tratados como “sócios”. Devem ser partícipes dos seus sucessos e co-responsáveis dos fracassos. O estado de miserabilidade em que vegeta a grande maioria da população mundial é incompatível, pois, com nossa humanidade, com a condição de seres racionais. Estamos só de passagem no mundo. Nada, rigorosamente nada, é de ninguém.

O que existe, diz a mínima lógica, deveria ser partilhado com cada pessoa, conforme suas necessidades. O que é lógico para qualquer indivíduo esclarecido, soa como heresia para ideólogos de todas as ideologias. Daí este paraíso cósmico haver se transformado no inferno que é. Em vez de se erigirem pontes, para conciliar diferenças e aproximar diferentes, erigem-se muros para separá-los para sempre. Ou pior, cavam-se abismos que, como o Gran Canyon, nos Estados Unidos, apenas se aprofundam à medida que o tempo passa e que se sucedem gerações. Crescem e se multiplicam como ratos os egoístas, os usurpadores e, principalmente, os indiferentes.

Ponderemos: o oposto do amor não é, como se pensa, o ódio. É a indiferença. E esta se caracteriza pelo fato de não se ligar a mínima a alguém, ignorando, até mesmo, sua existência. Trata-se da frieza suprema, do total pouco-caso, da completa ausência de sentimentos. Estes são os construtores de muros de separação por excelência. São os cavadores de valas, que se transformam em abismos, separando os diferentes.

O ódio, por exemplo, embora sempre destrutivo, não deixa de ser uma forma de paixão (posto que condenável), porquanto leva em conta quem é alvo dele, mesmo que seja para o combater. Quem odeia, portanto, “respeita”, de certa forma, o desafeto. Já a indiferente... nutre pelo antagonista supremo, olímpico desprezo, como se este fosse o pior dos piores. Nada há de mais ofensivo do que essa infeliz atitude.

É certo que o envolvimento, tanto com pessoas, quanto com causas, implica em riscos. Isto é óbvio. O escritor Michael Drury aponta alguns desses perigos: "Ninguém pode negar que se envolver em coisas significa arriscar-se. A pessoa de que nos enamoramos pode magoar-nos terrivelmente; os amigos que discutem e que tentamos reconciliar poderão voltar-se contra nós com a sua cólera conjugada; o homem que se afoga e tentamos salvar pode arrastar-nos consigo para o fundo. Contudo, evitando dissabores e desapontamentos, tornamo-nos frios, desumanos". Tornamo-nos indiferentes. Em vez de tentarmos erigir pontes, apenas cavaremos abismos.

O estranho é ver intelectuais comprometidos com o acúmulo de riquezas pessoais, empenhando o que de melhor possuem em um objetivo tão pífio. Ninguém mais do que eles tem capacidade para perceber o quanto essa meta é vazia e até absurda. Sequer é necessário mencionar a razão. Tais pessoas sabem, conhecem-nas de sobejo.

Albert Einstein, em seu livro "Como Vejo o Mundo", expressa: "Tenho a firme convicção de que nenhuma riqueza de bens materiais pode fazer progredir o homem, mesmo que ela esteja nas mãos de homens que demandam uma meta superior. Pode alguém imaginar Moisés, Jesus ou Gandhi armados com um saco de dinheiro?" A resposta à questão é óbvia.

Ainda há, felizmente, pessoas empenhando prestígio e credibilidade nas grandes causas sociais, embora em um número aquém do que seria desejável. Há muita gente erigindo pontes ou tentando aterrar abismos. São utópicos? Sem dúvida. Mas são essas pessoas que mantêm o mundo girando e as coisas funcionando com certa normalidade, mesmo sem serem reconhecidas, quanto mais recompensadas (embora nem esperem recompensas).

Quem vive apenas para si, fazendo da acumulação de objetos materiais seu o objetivo de vida, indiferente às necessidades e sofrimentos alheios,em determinado momento de reflexão, mesmo que este seja o de uma simples fração de segundo, vai se dar conta de que a sua existência é fútil e vazia. Terá muita sorte se conseguir escapar da depressão ou de outra neurose mais grave.

O homem ativo, altruísta, que tem na ética e nas virtudes o seu fundamento, que derruba muros e constrói pontes para atravessar abismos, não corre nunca esse risco. Não malbarata tempo juntando o que jamais levará para a sepultura. Ninguém é dono de nada no mundo. Temos apenas a posse transitória das coisas, pelo tempo em que vivermos. Assim que a morte nos suprimir a chance de continuarmos com essa maravilhosa aventura, chamada "vida", não poderemos interferir na escolha sobre a quem caberá nosso espólio, cada objeto, cada livro, cada centavo do dinheiro que juntamos e a que tanto nos apegamos.

Esse tema, de abismos, muros e pontes, vem, há tempos, sendo tratado, das mais diversas formas, na literatura. Está mais presente, é verdade, nas obras dos poetas, esses incorrigíveis sonhadores, esses utopistas natos, esses escritores dopados e embriagados de ideais. É uma tentativa de sensibilizar os insensíveis, os indiferentes que, por conseqüência, também são omissos. Peço licença para reproduzir um poema, que compus no já longínquo 5 de abril de 1971, com minha visão particular a propósito do tema:

Pontes


Minha vida tem sido uma busca
por justiça e pela criação
de liames, de pontes concretas
que liguem o real ao ideal.

Constante pesquisa do que sou,
de olho no que possa vir a ser,
sem pensar no que esperam de mim.

Muitas vezes perco-me em vazios,
fico sem ter referenciais
e ao tentar livrar-me do atoleiro
vacilo e atolo-me mais e mais.

Sob os pés que trilham este trecho
esquecido e singular do tempo,
abrem-se fundas, famintas valas,
perdem-se esperanças e crenças.

Mas volto a lançar pontes de barro,
renovo com freqüência o alento
e, munido de exemplar paciência,
disponho-me a recomeçar.

E os dias, com suas circunstâncias,
macetes e peculiaridades,
as horas, passageiras fugazes,
as muitas ausências e distâncias,
são valas escuras e profundas,
famintas, insaciáveis gargantas.
Hienas famélicas e vorazes,
encurvadas, sempre a gargalhar
dos meus tolos sonhos infantis:
devoram toda e cada esperança
nova. Forçam a me renovar.

Não houvesse você, alma gêmea,
que partilha ilusão e a vida,
sonhos, sorte, azar e destino,
fé e tudo o quanto ainda sou;
não houvesse você, companheira,
que segue através do meu caminho
repisando os rastros dos meus passos,
e jamais eu lançaria pontes
sobre abismos e valas profundos
e ao invés de apenas meus desejos
eles destruiriam meu ser.

Vem para meus braços, doce amada.
Sinta...Sinta o mudo desespero
que vibra na fragílima carne.
Sinta...Sinta na sua estrutura
minha virilidade, euforia,
meu carnal e instintivo amor.
Acolhe neste seu ventre fértil
sementes sagradas do amanhã.
Faça gerar em suas entranhas,
para lançar sobre o fundo abismo
a nossa concretíssima ponte
entre o efêmero humano e Deus.

Somos educados para a competição, mas nem sempre (ou quase nunca) estamos dispostos a seguir regras. Competir não é errado, desde que com lealdade e sem humilhar o adversário vencido, mas socorrendo-o nas adversidades. Embora retoricamente condenemos essa atitude egoística e indiferente,, na prática agimos achando que os meios (lícitos ou não, éticos ou não, justos ou não) justificam os fins. Corremos atrás de sombras. A substância não se faz presente. Mesmo sem nos darmos conta, erigimos muros e mais muros. Cavamos valas, cada vez mais profundas, até que se transformem em abismos. Recusamo-nos, porém, ou não sabemos, ou não queremos construir pontes.

O homem, em sentido genérico, abre mão do usufruto da beleza que existe em tudo o que o cerca, bastando apenas um pouco de atenção para ser percebida e aproveitada – e onde reside a verdadeira felicidade – foge das emoções sadias, abomina a solidariedade para tentar conquistar o abstrato: fama, fortuna e poder. Trilogia maldita que desgraça multidões! Sombras, fumaça, ilusões...

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