Sunday, October 30, 2011







Direito torna-se utopia

Pedro J. Bondaczuk

A Organização das Nações Unidas propõe, ainda para este ano que já está chegando ao fim, uma ação conjunta internacional para algo que ainda não passa de utopia (e que provavelmente sempre será), embora seja um dos direitos fundamentais do homem, consagrados em sua Carta Constitutiva firmada pela totalidade de seus Estados-membros: a erradicação da pobreza no mundo.
Indicadores de várias agências da ONU e de outros órgãos particulares, no entanto, revelam que a situação de miséria de bilhões de pessoas – mais precisamente, de dois terços dos habitantes do Planeta – se torna uma questão cada vez mais urgente. Em vez de sofrer redução, aumenta de maneira contínua, dramática e perigosa.
De tanto a solução dos problemas ser adiada para um tempo que não se sabe quando vai chegar (se chegar) e para uma geração de um futuro vago e bastante remoto, estes continuam se acumulando, se agravando, ganhando dimensões monstruosas. Já atingiram o ponto da intolerabilidade.
Há, hoje, "quatro mundos", aceitos quase que consensualmente e citados a todo o instante por estudiosos do comportamento, separados entre si por abismos que se alargam e que ameaçam se tornar intransponíveis, por compartimentos estanques. No topo, há cada vez menos pessoas, de número decrescente de países. Na base? Está o resto da humanidade.
A tecnologia agrícola e a engenharia genética (que melhorou as linhagens de grãos e de animais utilizados como alimento) permitem uma produção crescente de comida, suficiente para alimentar todos os habitantes da Terra e com sobras. No entanto, estimativas conservadoras são de que em torno de 800 milhões de indivíduos são afetados na atualidade pela fome.
Este, de acordo com documento divulgado pela comissão pontifícia Cor Unum, do Vaticano – a organização que coordena as ajudas econômicas da Santa Sé – é o maior "escândalo" dos nossos tempos, marcados, convenhamos, por fatos escandalosos, escabrosos, tenebrosos e terríveis em profusão. É o maior desafio que o homem tem à sua frente e que precisa se dispor a vencer, antes de aspirar ao objetivo maior, de erradicar a pobreza.
Não existe ninguém mais pobre do que aquele que não tem sequer o que comer. E os que vegetam nestas condições não são um, dois, dez, cem, mil. Ascendem a milhões. No Brasil, com o advento do Plano Real, de repente, o assunto deixou a mídia, que freqüentou por certo tempo.
É como se ocorresse um súbito "milagre", que tornasse a mesa do brasileiro – de todos e de cada um deles – senão farta, pelo menos suficiente para satisfazer suas necessidades vitais. Não foi, certamente, o que aconteceu.
Até há dois anos, faziam-se campanhas por todo o País para arrecadar alimentos para os famintos. Dizia-se então que havia 35 milhões deles. Outros contestavam essa cifra como exagerada e afirmavam que o número não passava de 15 milhões. Mas a quantidade é o que menos importa. Um único ser humano que morra de inanição já se constitui em escândalo para a sociedade que permitiu que isso ocorresse. A questão não é quantitativa, mas ética.
Como "milagres" não ocorrem a toda a hora (e com tamanha profusão), o que certamente aconteceu foi que o tema fome, de tanto ser repetido, "cansou". Deixou de ser original e, portanto, de dar manchetes. Perdeu a preferência dos políticos, que passaram a procurar assuntos que estivessem mais na moda.
Foi de fato o que ocorreu? Ou todos os quase 158 milhões de brasileiros passaram a ter o que comer? Certamente que não! É até provável que, a despeito de se apregoar que o Plano Real teve efeitos milagrosos, o número de famintos (que ninguém sabe quantos são) tenha aumentado. É caso para se conferir.
O documento do Vaticano, de 75 páginas, intitulado "A fome no mundo. Um desafio para todos: o desenvolvimento solidário", foi divulgado a propósito da Reunião de Cúpula Mundial da Alimentação, convocada pela ONU para Roma, prevista para ser realizada de 13 a 17 de novembro próximo.
Nesse encontro, chefes de Estado e de governo prometem assumir um compromisso (mais um?) para erradicar em longo prazo esse flagelo que acompanha o homem desde o seu surgimento sobre a Terra. Em quanto tempo? Um milênio? Dois? Dez? O ideal é que fosse ainda neste ano, pois há condições para isso. O que falta? Todos sabem... é redundante repetir.
O citado relatório enfatiza que a fome mundial é causada não por algum eventual esgotamento dos recursos do Planeta que, mesmo tão judiado, continua correspondendo às necessidades dos seus habitantes (de todos eles, tanto os já existentes quanto os que virão).
Aponta uma série de causas, desde as estruturais (como a dívida externa e programas de ajuste que os países devedores são obrigados a adotar e que se refletem somente nos humildes e desprotegidos, a maioria) às morais, envolvendo egoísmo, omissão, corrupção, etc.
O documento destaca que acabar com a fome é um desafio para toda a humanidade e não somente de ordem econômica e técnica (de facílima solução), mas principalmente ética, espiritual e política. Nesse último caso, aponta distorções, tão nossas conhecidas, como a explosão populacional (dada a paternidade irresponsável), concentração de recursos financeiros em pouquíssimas mãos e a reforma agrária.
Só por isso, o objetivo da ONU, proposto para 1996 – eleito para ser o Ano Internacional para a Erradicação da Pobreza – é utópico. Não no sentido de que não seja factível, mas no de que, com certeza, não será realizado, por não empolgar a presente geração (não, pelo menos, os que têm poder e capacidade de decisão).
Mário Donato, no ensaio "Utopias e o sonho azul da Colônia Cecília", publicado em abril de 1983 no suplemento "Leitura", do "Diário Oficial do Estado", pergunta: "Utopia? Que é uma utopia no consenso atual?". E apressa-se a responder: "Algo de paradisíaco e de inefável. Tão bom que se faz inexequível". Este, no entanto, é o sentido moderno conferido ao termo.
As utopias são realizáveis, desde que haja vontade e empenho. É perfeitamente possível, por exemplo, evitar a morte de 50 crianças por minuto (conforme estimativas) de fome, subnutrição ou doenças causadas por esta. São vidas preciosas que se perdem, talvez Beethovens, Leonardos da Vinci, Alberts Schweitzer, Alberts Sabin ou São Franciscos de Assis em profusão.
Não será com congressos, com conferências, com palestras ou com reuniões de cúpula que o problema vai ser solucionado. Tais eventos só vão servir de palanques aos políticos, para que exponham, em âmbito bastante amplo, suas vaidades e aspirações pessoais mesquinhas. Há providências simples que podem e devem ser tomadas e não são.
Embargos de alimentos são criminosamente usados como forma de punição a povos inteiros, como são os casos de Cuba e do Iraque, quando não deveriam ser. Determinadas políticas recessivas perversas são crescentemente implantadas, apenas para atender interesses de minorias.
Há condições para a instituição de um fundo internacional de alimentos, de um estoque de segurança, que poderia e deveria ser distribuído nas regiões críticas. Os custos seriam ínfimos, se comparados ao que se gasta na produção e comércio de armas. Mas isto não interessa aos que assumem a postura de "donos do mundo"
Para que tal medida desse certo, seria preciso que não houvesse corrupção, o que é outra utopia. Ela existe... E nem ganância... E nem a busca a qualquer custo pelo poder e por sua conservação... Para eliminar esses desvios de caráter e de comportamento seria preciso que se criasse um novo homem que fosse, de fato, o "Homo Sapiens" que se apregoa e não este arremedo de ser racional que habita atualmente o Planeta.

(Artigo publicado na página 3, Opinião, do Correio Popular, em 25 de outubro de 1996)

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