Sunday, October 02, 2011







Perda de identidade

Pedro J. Bondaczuk

A Libéria foi, até 1980, um país "sui gêneris" na África. Não que fosse uma doce ilha de prosperidade num vasto oceano de misérias, longe disso. Mas até aquela época, jamais havia conhecido o dissabor e o trauma de uma troca violenta de governo, através do expediente tão familiar no Terceiro Mundo do golpe de Estado. Todavia, naquele ano fatídico, o general Samuel Doe resolveu entrar pela porta dos fundos na história (até então exemplar) de seu país, abrindo esse precedente. Em 12 de abril de 1980 depôs o presidente William Tolbert e não satisfeito com isso, mandou que ele fosse morto sumariamente, sem qualquer julgamento e nem chance alguma de defesa.

Dias depois, fez uma devassa no regime anterior e ordenou o fuzilamento, em 22 de abril, de 13 ex-ministros e altos funcionários do governo deposto. Sua "reforma", entretanto, não parou por aí. Fechou o Parlamento nacional, criando para substituí-lo uma estranha excrescência institucional chamada "Conselho de Rendação Popular", composto de homens de sua inteira confiança, escolhidos a dedo pelo critério de lealdade, para elaborarem as leis liberianas. A Constituição nacional, motivo de orgulho para aquele povo, que vigorava ininterruptamente desde a independência, em 1847 (com 133 anos de vigência quando da subida ao poder do general Samuel Doe), foi simplesmente abolida. E a África ficou mais pobre, muito mais pobre, em termos de tradição democrática.

A Libéria tornou-se república independente antes mesmo que as potências ocidentais fizessem a partilha do continente africano. Essa ação de rapina dos países poderosos foi realizada durante a reunião de Berlim, levada a efeito em 1885. Na ocasião, os liberianos já tinham a sua nacionalidade consolidada há 38 anos. E por ser uma comunidade nacional criada sob as bênçãos e inspiração norte-americana, ninguém ousou apropriar-se dela e transformá-la em sua colônia.

Em 1816, foi criada nos Estados Unidos uma entidade que se opunha à vergonhosa prática da escravidão. Isso, 49 anos antes da mesma ter sido abolida, no rastro da Guerra da Secessão. Era a Sociedade Americana de Colonização, que tinha como principal objetivo comprar a liberdade de negros escravizados e os enviar para seu continente de origem: a África. Em 1822, essa entidade que já vinha adquirindo áreas no continente africano, criou a primeira colônia de ex-cativos, na Ilha Providence, onde atualmente está localizada Monróvia. Dois anos depois, o núcleo de colonização era batizado de Libéria, que deveria ser a pátria da liberdade. Nessa mesma época sua capital foi batizada com o nome que ostenta até hoje, numa homenagem ao presidente norte-americano James Monroe.

Os ex-escravos organizaram-se socialmente e em 26 de julho de 1847, um homem nascido nos Estados Unidos, mais especificamente na Virgínia, Joseph Jenkins Robert, proclamava o nascimento do novo país. Desde então, até 1980, embora vários presidentes tivessem exercido dez, 20 e até 30 anos de mandato (a Constituição liberiana não limitava o número de reeleições), ninguém se valeu da violência para assumir a máxima magistratura. Todos foram rigorosamente eleitos pelo povo. O que pensaria o pai da independência da Libéria sobre o regime atual? Certamente concluiria que não valeu a pena ter deixado os Estados Unidos para viver sob uma ditadura. Ou alguém acha que valeu?

A tentativa de golpe, verificada ontem naquele país, foi só uma conseqüência dessa ruptura de uma longa tradição democrática (embora de efeito retardado), que nunca deveria ser interrompida. Foi encabeçada pelo mesmo militar que tentou, em 1983, idêntica façanha, o general Thomas Quiwonkpa. Uma coisa é certa. Outras tentativas vão acontecer. Quantas, é impossível de se prever. Algumas serão sufocadas. Outras tantas, certamente, terão sucesso e os regimes assim impostos serão derrubados, tempos depois, por expedientes idênticos. A Libéria perdeu seu principal distintivo em relação ao resto da África. Hoje é um país como qualquer outro do continente: violento, paupérrimo (sua renda per capita é de irrisórios US$ 390 anuais) e economicamente inviável.

(Artigo publicado na página 10, Internacional, do Correio Popular, em 13 de novembro de 1985)

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