Saturday, October 22, 2011







Autênticos poetas

Pedro J. Bondaczuk

Os compositores de músicas populares, refiro-me aos letristas, são “autênticos” poetas, considerando-se a essência da poesia, embora não se costume encará-los como tal. E por que essa ênfase na autenticidade? Porque eles resgatam a própria origem da arte poética. Nos tempos bem remotos, quando a escrita ainda não havia sido inventada, os poemas eram todos musicados, para fixar os conceitos que abordavam na mente das pessoas. A poesia tinha a função que os livros têm hoje: de instruir, informar e registrar o que era considerado digno de registro.
Há canções populares que, abstraindo a melodia, se sustentam por si sós, por suas letras, magníficos poemas que nos encantam e marcam nossas trajetórias de vida. Cada um de nós poderia citar “n” exemplos a propósito. Claro que nem todo letrista é exímio na arte de poetar, como, ademais, nem todo poeta consegue agradar a todo o mundo. Aliás, como diz o surradíssimo clichê, ninguém “consegue agradar, simultaneamente, a gregos e troianos”. E não mesmo!
A riquíssima e valiosa MPB, todavia, acaba de perder um dos seus mais inspirados, criativos e prolíficos compositores de todos os tempos. Refiro-me a Billy Blanco, que morreu em 8 de julho de 2011 (ontem), véspera do 51º aniversário da morte de Vinícius de Moraes, carinhosamente chamado por amigos e admiradores de “poetinha”. Essa dupla é responsável por canções imortais, notadamente as do movimento musical (e social) conhecido como “Bossa Nova”.
Por anos achei que Billy Blanco fosse carioca, já que captou, como ninguém, o comportamento, o linguajar e a ginga dos moradores da sempre maravilhosa cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Foi com surpresa que descobri, agora (e perdoem a minha ignorância), que ele era paraense. Nasceu em Belém, em 8 de maio de 1924. Seu nome de batismo era William Blanco Abrunhosa Trindade. Quem diria!
Sua profissão nada tinha a ver com música e, principalmente, com poesia, embora não deixasse de ser uma arte. Billy Blanco era arquiteto. É provável que tenha incorporado sua experiência na arquitetura – naquilo que se refere à simetria, estética, bom-gosto – em suas luminosas composições. É como escrevi dias desses: quanto maior for nossa experiência de vida, maiores serão nossas chances de nos darmos bem em literatura.
Tecnicamente, Billy Blanco pode ser considerado, também, escritor. Afinal escreveu dois livros, ambos em parceria com Regina Helena Macedo: “Tirando de letra e música” (1996), lançado pela Record e “Florentino Dias: uma vida dedicada à música”, publicado pela mesma editora.
Sua primeira canção composta foi “Pra variar”. Isso ocorreu em 1951. Duvido que na ocasião Billy Blanco sequer desconfiasse que viria a adquirir tamanha importância na música popular brasileira. O que compôs na sequência foi decisivo para o sucesso de inúmeros intérpretes, como Dick Farney, Hebe Camargo, Lúcio Alves, Elis Regina, João Gilberto, Miltinho, Dolores Duran (igualmente compositora), Pery Ribeiro, Sílvio Caldas, Nora Ney, Jamelão, Elizeth Cardoso, Dóris Monteiro e vai por aí afora. Marcou, de fato, uma época. Dele pode-se, portanto, dizer que “deixou a vida para entrar na história”.
Fôssemos relacionar seus sucessos, encheríamos páginas e mais páginas de títulos. Pena que as novas gerações não tenham acesso a esses hits da MPB! Como se sabe, este país não prima pela preservação da memória dos que lançaram os alicerces para o seu desenvolvimento econômico, social, cultural e artístico. Mas quem acompanha música (que, como se sabe, é atemporal e independe do tempo e da moda), conhece dezenas, quiçá centenas de canções compostas por Billy Blanco.
Namorei muito, por exemplo, tendo como pano de fundo, como trilha sonora, a composição “Tereza da praia”, na voz de Lúcio Alves. Várias das suas canções marcaram momentos inesquecíveis da minha vida (e de milhões de pessoas da minha geração). Cito, neste caso, “Sinfonia paulistana”, “A banca do distinto”, “Samba triste” (em parceria com Baden Powell), “Sinfonia do Rio de Janeiro” (em que teve, como parceiro, ninguém menos que Antonio Carlos Jobim), “O morro”, “Estatuto da gafieira”, “Mocinho bonito”, “Viva meu samba”, “Samba de morro”, “Canto livre” etc.etc,etc.
Foi um gênio, este Billy Blanco. Foi um poeta com, “P’ maiúsculo, como poucos, dos tantos que lançam livros e mais livros, mas que não sensibilizam, não mexem com as emoções, não bagunçam sentimentos, não servem sequer para acompanhar nossos momentos de dor-de-cotovelo. Se me pedissem que destacasse uma, apenas uma de suas composições, eu não conseguiria. E não por eventualmente nenhuma delas me sensibilizar. Exatamente pelo contrário. Ou seja, porque “todas”, de uma forma ou de outra, foram marcantes para mim e estão gravadas, a ferro e fogo, na minha memória.
Como sempre faço, quando me refiro a poetas, selecionei uma das letras (a que mais tenho me referido sempre que abordo a MPB e notadamente a Bossa Nova). Trata-se de “A banca do distinto”, consagrada na voz de Dóris Monteiro (outros artistas também a gravaram, mas a interpretação mais célebre dela foi, mesmo, dessa cantora). Vejam que versos inteligentes e até filosóficos, de fazerem inveja aos mais badalados poetas de qualquer parte do mundo.
“Não fala com pobre, não dá mão a preto
Não carrega embrulho
Pra que tanta pose, doutor
Pra que esse orgulho
A bruxa que é cega esbarra na gente
E a vida estanca
O enfarte lhe pega, doutor
E acaba essa banca
A vaidade é assim, põe o bobo no alto
E retira a escada
Mas fica por perto esperando sentada
Mais cedo ou mais tarde ele acaba no chão
Mais alto o coqueiro, maior é o tombo do coco afinal
Todo mundo é igual quando a vida termina
Com terra em cima e na horizontal”.

Esse foi o paraense, com alma carioca, Billy Blanco, que nos deixou, mas nos legou uma obra de muita, muitíssima qualidade, que merece ser divulgada, usufruída e conservada para sempre, como relíquia da nossa arte popular.

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