Rótulos e estereótipos
Pedro J. Bondaczuk
Sou visceralmente contrário à mania que determinadas pessoas têm de apor rótulos a textos literários. Muito sujeitinho arrogante, que arrota pretenso bom-gosto, torce o nariz, por exemplo, diante de um soneto de Olavo Bilac, de algum poema de Castro Alves ou de um Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos ou Capistrano de Abreu. “Sou moderno e não gosto dessas velharias”, dizem do alto da sua empáfia, apegados à forma de se expor uma idéia ou sentimento, sem se dar conta do conteúdo. Se o poema for parnasiano, ou simbolista, para esses intelectuais de algibeira não presta. Esquecem-se que essas classificações, por “escolas”, existem, apenas, para efeito didático, de estudo da literatura. Nenhum escritor atual está proibido de escrever como Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos ou Capistrano de Abreu, entre outros. O diabo é conseguir fazê-lo.
Com esta baboseira, com esta interpretação equivocada das escolas literárias, estão conseguindo estereotipar a literatura, notadamente os clássicos brasileiros. Que bobagem minha gente! Se eu quiser compor um poema que possa ser classificado como simbolista, explorando com perícia e competência um tema original, se for rigorosamente correto na forma de me expressar, sem qualquer erro gramatical, sequer de acentuação ou pontuação, se for, principalmente, claro e minhas metáforas, apesar de supercriativas, forem altamente explicativas, ele não terá valor literário algum, por não ser “moderno”? Para ele ser bom, precisarei violar normas semânticas, eivar cada verso de neologismos estúpidos e ser contraditório e obscuro? Estou fora! Isso não é literatura. Pode ser, quando muito, exibicionismo literário.
E por que trago isso à baila? Por causa de um incidente que ocorreu comigo há alguns meses. Fui convidado a comparecer a uma reunião informal (em termos, porquanto na prática era formalíssima) de escritores, na casa de um deles, com o qual tenho muita amizade. Em princípio, não gosto desse tipo de encontros. Eles costumam ser um confronto de egos, uma competição de vaidades, onde cada qual quer exibir mais ostensivamente seus supostos (e não raro reais mesmo) dotes literários. A reunião ia bem, com cada qual expondo o que estava produzindo na oportunidade. Éramos oito escritores. Cada um leu um trecho dos seus novos livros, muitos já em fase de revisão. Ao chegar a minha vez, em vez de ler um texto meu, num impulso, declamei de memória (e nem sei explicar porque) este belo soneto de Florbela Espanca, intitulado “Silêncio!...” e que diz: “No fadário que é meu, neste penar,/Noite alta, noite escura, noite morta,/Sou o vento que geme e quer entrar,/Sou o vento que vai bater-te à porta...//Vivo longe de ti, mas que me importa?/Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear/Em roda à tua casa, a procurar/Beber-te a voz, apaixonada, absorta!//Estou junto de ti, e não me vês.../Quantas vezes no livro que tu lês/Meu olhar se pousou e se perdeu!//Trago-te como um filho nos meus braços!/E na tua casa... Escuta!...Uns leves passos.../Silêncio, meu Amor! Abre! Sou eu!...”
Prá quê!!! Terminada a declamação, notei um ar de constrangimento geral no grupo. “O que foi, não gostaram?”, perguntei, entre perplexo e irritado, já que não tenho papas na língua e não sou muito chegado a salamaleques, a pretexto de ser “bem educado”. Um dos escritores (cujos livros soem encalhar um a um nas livrarias e todos foram bancados do próprio bolso) disse, melifluamente, no tom mais hipócrita possível, mas com a língua destilando veneno: “Por que você não apresenta algo mais moderno (e citou um poeta francês da moda, cuja obra não conheço e cujo nome não me lembro). Florbela Espanca? Ora, é antiga demais. Ademais, este é um soneto parnasiano”. E pronunciou esta última palavra com um esgar de nojo, como se se tratasse de uma grande porcaria.
Precisei contar até dez para não dizer o que queria naquele momento. Minha esposa, que vem me ministrando um “curso intensivo” de boas maneiras, para colocar meu temperamento nos eixos, olhou-me de soslaio e entendi a mensagem. Respirei fundo, e li uma das minhas crônicas mais recentes, que, para meu espanto, não mereceu nenhuma restrição ou o mínimo reparo de ninguém. O tal sacripanta não ousou dizer que ela não era “moderna”. O texto estava no mais rigoroso dos padrões atuais do gênero (como poderia não estar).
Fiquei pasmo face às observações feitas sobre o magnífico soneto de Florbela Espanca que havia declamado. Deus do céu, encontrar defeitos imaginários, impingir rótulo, estereotipar um poema tão belo!!! Até agora, não consigo me conformar com isso. Como não consigo, principalmente, entender a cabeça dessas pessoas. E não se trata de nenhum grupo de analfabetos funcionais ou de leitores de primeira viagem. Naquele círculo só havia escritores, todos com no mínimo dois livros publicados. Não consigo encarar a literatura de maneira tão superficial e pedante.
Mas vinguei-me dessa turma. Pedi de novo a palavra e declamei, pondo alma e expressão na declamação, este primor de soneto de Cruz e Sousa, o mais legítimo e característico dos simbolistas, intitulado “Caminho da glória: “Este caminho é cor-de-rosa e é de ouro,/Estranhos roseirais nela florescem,/Folhas augustas, nobres reverdecem/De acanto, mirto e sempiterno louro.//Neste caminho encontra-se o tesouro/Pelo qual tantas almas estremecem;/É por aqui que tantas almas descem/Ao divino e fremente sorvedouro.//É por aqui que passam meditando,/Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,/Neste celeste, límpido caminho//Os seres virginais que vêm da terra,/Ensangüentados da tremenda guerra,/Embebedados do sinistro vinho”.
À medida em que ia declamando, ia me afastando em direção à porta. Assim que cheguei à parte “embebedados do sinistro vinho”, deixei o recinto, sem me despedir de ninguém e nem esperar pela esposa. Com certeza, nunca mais serei convidado para qualquer outra reunião com essa turma. Ainda bem! Claro que em casa, tive que ouvir uma espinafração em regra, feita por minha esposa, por minha “suprema fala de educação”. Mal educado, eu?!!! Não, mulher!!! Mal educado é quem impõe restrições a um belíssimo soneto de Florbela Espanca, por entendê-lo como parnasiano (nem sei se de fato é). Aliás, é mal educado, pedante e burro, o que é muito mais grave. Cuidado, pois, com rótulos e estereótipos, para não cair em ridículo.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
Sou visceralmente contrário à mania que determinadas pessoas têm de apor rótulos a textos literários. Muito sujeitinho arrogante, que arrota pretenso bom-gosto, torce o nariz, por exemplo, diante de um soneto de Olavo Bilac, de algum poema de Castro Alves ou de um Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos ou Capistrano de Abreu. “Sou moderno e não gosto dessas velharias”, dizem do alto da sua empáfia, apegados à forma de se expor uma idéia ou sentimento, sem se dar conta do conteúdo. Se o poema for parnasiano, ou simbolista, para esses intelectuais de algibeira não presta. Esquecem-se que essas classificações, por “escolas”, existem, apenas, para efeito didático, de estudo da literatura. Nenhum escritor atual está proibido de escrever como Olavo Bilac, Castro Alves, Cruz e Sousa, Augusto dos Anjos ou Capistrano de Abreu, entre outros. O diabo é conseguir fazê-lo.
Com esta baboseira, com esta interpretação equivocada das escolas literárias, estão conseguindo estereotipar a literatura, notadamente os clássicos brasileiros. Que bobagem minha gente! Se eu quiser compor um poema que possa ser classificado como simbolista, explorando com perícia e competência um tema original, se for rigorosamente correto na forma de me expressar, sem qualquer erro gramatical, sequer de acentuação ou pontuação, se for, principalmente, claro e minhas metáforas, apesar de supercriativas, forem altamente explicativas, ele não terá valor literário algum, por não ser “moderno”? Para ele ser bom, precisarei violar normas semânticas, eivar cada verso de neologismos estúpidos e ser contraditório e obscuro? Estou fora! Isso não é literatura. Pode ser, quando muito, exibicionismo literário.
E por que trago isso à baila? Por causa de um incidente que ocorreu comigo há alguns meses. Fui convidado a comparecer a uma reunião informal (em termos, porquanto na prática era formalíssima) de escritores, na casa de um deles, com o qual tenho muita amizade. Em princípio, não gosto desse tipo de encontros. Eles costumam ser um confronto de egos, uma competição de vaidades, onde cada qual quer exibir mais ostensivamente seus supostos (e não raro reais mesmo) dotes literários. A reunião ia bem, com cada qual expondo o que estava produzindo na oportunidade. Éramos oito escritores. Cada um leu um trecho dos seus novos livros, muitos já em fase de revisão. Ao chegar a minha vez, em vez de ler um texto meu, num impulso, declamei de memória (e nem sei explicar porque) este belo soneto de Florbela Espanca, intitulado “Silêncio!...” e que diz: “No fadário que é meu, neste penar,/Noite alta, noite escura, noite morta,/Sou o vento que geme e quer entrar,/Sou o vento que vai bater-te à porta...//Vivo longe de ti, mas que me importa?/Se eu já não vivo em mim! Ando a vaguear/Em roda à tua casa, a procurar/Beber-te a voz, apaixonada, absorta!//Estou junto de ti, e não me vês.../Quantas vezes no livro que tu lês/Meu olhar se pousou e se perdeu!//Trago-te como um filho nos meus braços!/E na tua casa... Escuta!...Uns leves passos.../Silêncio, meu Amor! Abre! Sou eu!...”
Prá quê!!! Terminada a declamação, notei um ar de constrangimento geral no grupo. “O que foi, não gostaram?”, perguntei, entre perplexo e irritado, já que não tenho papas na língua e não sou muito chegado a salamaleques, a pretexto de ser “bem educado”. Um dos escritores (cujos livros soem encalhar um a um nas livrarias e todos foram bancados do próprio bolso) disse, melifluamente, no tom mais hipócrita possível, mas com a língua destilando veneno: “Por que você não apresenta algo mais moderno (e citou um poeta francês da moda, cuja obra não conheço e cujo nome não me lembro). Florbela Espanca? Ora, é antiga demais. Ademais, este é um soneto parnasiano”. E pronunciou esta última palavra com um esgar de nojo, como se se tratasse de uma grande porcaria.
Precisei contar até dez para não dizer o que queria naquele momento. Minha esposa, que vem me ministrando um “curso intensivo” de boas maneiras, para colocar meu temperamento nos eixos, olhou-me de soslaio e entendi a mensagem. Respirei fundo, e li uma das minhas crônicas mais recentes, que, para meu espanto, não mereceu nenhuma restrição ou o mínimo reparo de ninguém. O tal sacripanta não ousou dizer que ela não era “moderna”. O texto estava no mais rigoroso dos padrões atuais do gênero (como poderia não estar).
Fiquei pasmo face às observações feitas sobre o magnífico soneto de Florbela Espanca que havia declamado. Deus do céu, encontrar defeitos imaginários, impingir rótulo, estereotipar um poema tão belo!!! Até agora, não consigo me conformar com isso. Como não consigo, principalmente, entender a cabeça dessas pessoas. E não se trata de nenhum grupo de analfabetos funcionais ou de leitores de primeira viagem. Naquele círculo só havia escritores, todos com no mínimo dois livros publicados. Não consigo encarar a literatura de maneira tão superficial e pedante.
Mas vinguei-me dessa turma. Pedi de novo a palavra e declamei, pondo alma e expressão na declamação, este primor de soneto de Cruz e Sousa, o mais legítimo e característico dos simbolistas, intitulado “Caminho da glória: “Este caminho é cor-de-rosa e é de ouro,/Estranhos roseirais nela florescem,/Folhas augustas, nobres reverdecem/De acanto, mirto e sempiterno louro.//Neste caminho encontra-se o tesouro/Pelo qual tantas almas estremecem;/É por aqui que tantas almas descem/Ao divino e fremente sorvedouro.//É por aqui que passam meditando,/Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,/Neste celeste, límpido caminho//Os seres virginais que vêm da terra,/Ensangüentados da tremenda guerra,/Embebedados do sinistro vinho”.
À medida em que ia declamando, ia me afastando em direção à porta. Assim que cheguei à parte “embebedados do sinistro vinho”, deixei o recinto, sem me despedir de ninguém e nem esperar pela esposa. Com certeza, nunca mais serei convidado para qualquer outra reunião com essa turma. Ainda bem! Claro que em casa, tive que ouvir uma espinafração em regra, feita por minha esposa, por minha “suprema fala de educação”. Mal educado, eu?!!! Não, mulher!!! Mal educado é quem impõe restrições a um belíssimo soneto de Florbela Espanca, por entendê-lo como parnasiano (nem sei se de fato é). Aliás, é mal educado, pedante e burro, o que é muito mais grave. Cuidado, pois, com rótulos e estereótipos, para não cair em ridículo.
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