Sunday, May 15, 2011







Ato desmedido

Pedro J. Bondaczuk


As pessoas soem condenar atos desmedidos, incontroláveis e desproporcionais, dado seu exagero. Quando se trata, todavia, de construir algo – uma casa, uma cidade, uma obra de arte ou um poema, não importa – considero digno de louvor e sinto indisfarçável inveja de quem age dessa maneira. E não apenas isso, mas de quem esbanja talento com naturalidade e sem menosprezar ninguém. De quem é altruísta e sacrifica a vida pelo bem-estar e segurança alheios, como agiram, por exemplo, em épocas diferentes, São Francisco de Assis e Madre Teresa de Calcutá (e olhem que nem sou católico!). Gente assim é rara e merece nosso respeito, reconhecimento e gratidão. Tenho como paradigmas, portanto, os que praticam atos desmedidos, mas de competência, de genialidade e de bondade.

Admiro, também, os que vivem desmedidamente (para os padrões comuns), mas não somente o viver por viver, mas sendo úteis e produtivos em idades provectas, centenárias, ou ao redor delas. É o caso, por exemplo, dessa figura veneranda, que é o arquiteto Oscar Niemeyer. Aos 103 anos de idade, recém-completados, segue produtivo e genial, tanto que acaba de completar projeto do memorial (ou do museu, não lembro bem) de outro gênio, que igualmente já conta com idade considerável, que é o maior jogador de futebol de todos os tempos, Pelé.

Claro que por ser escritor, destino minha reverência e admiração mais profundas a quem exerça a mesma atividade que exerço e pela qual tenho tamanha paixão. É o caso do professor, ensaísta, crítico literário e tradutor Bóris Schnaiderman, que aos 93 anos de idade, continua sendo o cérebro lúcido e genial que acompanho há anos nos suplementos literários dos jornais e revistas do país. E por que cito, especificamente, este intelectual? Por uma série de razões, que tentarei resumir.

O primeiro e principal motivo é pela expectativa de seu novo livro, “Tradução: Ato desmedido”, que ele vinha nos prometendo desde 2004 e que, finalmente, já está em mãos da Editora Perspectiva, pronto para ser lançado. Era de se esperar que um espaço voltado à literatura registrasse isso, antes, durante e depois do lançamento. A segunda razão é a figura carismática desse intelectual, que guarda estreita identidade com a minha família (embora não o conheça pessoalmente). Schneiderman nasceu, por exemplo, na Ucrânia, em 1917 (ano da Revolução Bolchevique). Meu saudoso pai nasceu em uma cidade que na época pertencia a esse país e que atualmente pertence à Rússia. Por isso, considerou-se, a vida toda, russo, enquanto vários dos nossos parentes nascidos no mesmo lugar, consideram-se ucranianos. Bóris é, pois, nosso patrício.

Mário de Andrade, no poema “O poeta come amendoim”, escreveu, em determinado trecho: “Brasil amado não porque seja minha pátria,/pátria é acaso de migrações e do pão-nosso onde Deus der.../Brasil que eu amo porque é o ritmo do meu braço aventuroso,/o gosto dos meus descansos,
o balanço das minhas cantigas, amores e danças./Brasil que eu sou porque é a minha expressão muito engraçada,/porque é o meu sentimento pachorrento,/porque é o meu jeito de ganhar dinheiro, de comer e de dormir”. Meu pai elegeu, de coração aberto, o Brasil como sua pátria e sempre se orgulhou disso. Schneiderman fez o mesmo.

Todavia, esse notável intelectual, que veio para o nosso país em 1925, aos oito anos de idade, não somente se naturalizou brasileiro em 1941 (meu pai também o fez, mais ou menos na mesma época), mas serviu o exército da sua pátria de adoção, lutando na Segunda Guerra Mundial como soldado da Força Expedicionária Brasileira. A experiência, aliás, inspirou-lhe um romance, intitulado “Guerra em surdina”. Pena que os militares, em vez de lhe darem alguma medalha ou mesmo erigirem-lhe uma estátua, desrespeitaram-no anos depois.

Dadas suas posições coerentes e firmes contra a tortura, dada sua origem eslava e o fato de ter passaporte soviético, Bóris Schnaiderman teve sérios problemas com os militares na época da ditadura implantada no Brasil em 1964. Chegou, até mesmo, a ser preso (posto que em sala de aula). Será que quem o prendeu tinha a mais remota noção da besteira que estava fazendo? Duvido! Hoje, se o sujeito fosse identificado, morreria de vergonha dessa heresia que praticou. Enfim...

Bóris Schnaiderman, ressalto, esbanja lucidez e vigor intelectual, do alto dos seus 93 anos de idade, o que não deixa de ser incomum. Tanto que não se contenta em lançar um único livro. Lançará, logo de cara, dois (como eu fiz com “Lance fatal” e “Cronos e Narciso”). Do primeiro, já falei de passagem. O segundo foi escrito pelo poeta Guenadi Aigui e se intitula “Silêncio e clamor”. Mas se não é o autor, é como se fosse, pois a tradução é sua. E traduzir, convenhamos, é mais complicado do que produzir. Afinal, o tradutor tem que ter desembaraço e pleno conhecimento gramatical não de um, mas de dois idiomas simultaneamente. E olhem que o russo é em tudo diferente do português, a partir do alfabeto, que é cirílico. Além de traduzir o livro em questão, Bóris analisa os poemas nele contidos, contando com a parceria de sua esposa, Jerusa, também crítica literária e tradutora.

O que me dá maior satisfação em contar com este espaço diário é a possibilidade de escrever sobre as pessoas e os livros que gosto. Os senhores não verão por aqui críticas. E não porque eu seja alienado (pelo menos não me considero como tal). A razão é que não faço publicidade do que (e de quem) não gosto. Não destruo ninguém, mas também não dou colher de chá ao que (ou a quem) entendo que seja ruim. Considero que, se criticasse, estaria agindo com uma incoerência inconcebível. De uma forma ou de outra, estaria alardeando o que detesto. Voltando ao início destas reflexões, tenho consciência que meus comentários e reflexões são sempre e sempre e sempre desmedidos. Como desmedida, também (e principalmente) é minha admiração por quem cria e me instrui, como é o caso de Bóris Schneiderman.

Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk

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