Tuesday, May 24, 2011







Parceria post-mortem

Pedro J. Bondaczuk

A trilogia “Millenium”, do jornalista sueco Stieg Larsson, é um dos maiores sucessos editoriais da primeira década do século XXI. Vendeu uma quantidade imensa de livros mundo afora, e continua vendendo e esgotando edições após edições, sem que se saiba onde esse sucesso todo irá parar. Para que vocês tenham uma idéia, na Suécia, terra natal do autor, uma em cada quatro pessoas leu pelo menos um dos três livros da série. E o sucesso repetiu-se em toda a Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil.
O irônico de tudo isso é que Stieg Larsson não pôde testemunhar seu imenso êxito literário. Aliás, temia que os livros, se publicados, viessem a encalhar nas livrarias e se constituir em contundente fracasso. Morreu em sua casa, precocemente, vítima de um fulminante ataque cardíaco, aos 50 anos de idade, dias depois de haver entregue à editora os originais dos três romances da série. Ou seja, o lançamento foi feito postumamente. Quem se deu mal com sua morte súbita, porém, foi sua esposa e companheira de aventuras e ideais, a arquiteta Eva Gabrielsson. Ocorre que Larsson não deixou testamento. Pudera, sequer desconfiava que iria morrer na idade que tinha! Ninguém consegue prever um evento desses!
De acordo com a legislação sueca, em casos como este, em que não existe testamento e o casal não tenha filhos, os herdeiros legais dos bens do falecido, e notadamente dos direitos autorais dos seus livros caso seja escritor, são os pais e irmãos. Dessa forma... Eva ficou a ver navios. Claro que ela vem fazendo de tudo para reverter, na justiça, essa situação.
Ela acaba de lançar, simultaneamente, na França, Suécia e Noruega, um livro de memórias, que tende a gerar ainda mais polêmica em torno da questão, intitulado “Millenium, Stieg and me”. Ele foi escrito em colaboração com a jornalista francesa Marie-Françoise Colombari. O conteúdo, em boa parte da obra, é o que se espera desse gênero. Ou seja, a narrativa da infância de Eva, como ela conheceu Larsson (com quem esteve casada por 32 anos), a vida em comum do casal e seus esforços para manter a revista “Expo”, fundada pelo marido em 1995, quando a extrema-direita ganhava força na Suécia.
Até aí, tudo bem. Não há nada de excepcional que um livro de memórias não contenha. O que chamou a atenção da opinião pública e, principalmente, dos meios editoriais, todavia, foi a afirmação de Gabrielsson de que estava em condições de concluir o quarto volume da série “Millenium” (os três bem-sucedidos, recorde-se, são “Os homens que não amavam as mulheres”, “A menina que brincava com fogo” e “A rainha do castelo de ar”) e que está decidida a fazê-lo. Ela informa que esse novo livro está praticamente escrito, e pelo próprio marido falecido, que teria deixado 200 de suas páginas redigidas em um computador pessoal antes da morte prematura.
Para se antecipar a, ou prevenir comentários maldosos, Eva assegura que não está de olho no dinheiro, embora tenha consciência que esse quarto romance da série tende a vender tanto, ou até mais (por causa do fator “curiosidade”) do que os outros três. Assegura que sua intenção é fazer a vontade de Stieg e com isso reverenciar sua memória. Acho justa esta luta de Gabrielsson. Injusto é ela não herdar os direitos autorais do marido, apenas pelo fato deste não haver redigido um testamento.
Para quem não leu nenhum dos três livros da trilogia “Millenium”, informo que os principais personagens dessas histórias de suspense, que prendem o leitor da primeira à última página, são o jornalista investigativo Mikael Blonkvist e a hacker punk Lisbeth Salander. O primeiro desbarata esquemas fraudulentos e soluciona crimes escabrosos. Já a segunda, que parece ser uma garota frágil, é, na verdade, mulher determinada, ardilosa e perita tanto em ciberpirataria quanto nas táticas do pugilismo.
Outros personagens relevantes são Annika Giannini, irmã de Mikael, advogada cuja especialidade é a defesa de mulheres vítimas da violência e o inspetor Jan Bublanski, que ignora a promotoria e tem métodos bastante pessoais e nada ortodoxos de fazer investigações. Claro que sequer resumirei o enredo de nenhum dos três livros, para não estragar seu prazer de acompanhar e tentar desvendar por si só as respectivas tramas, meu exigente leitor.
Mas, voltando à Eva, ela explica porque é capaz de concluir o quarto volume da série “Millenium” que o marido teria deixado bem encaminhado: “Stieg e eu frequentemente escrevíamos juntos”. E não há porque duvidar disso. Só não concordo com a afirmação da viúva de que o dinheiro não tem nada a ver com toda essa história. Se fosse verdade, ela aceitaria a oferta da família do marido morto que, numa tentativa de conciliação, ofereceu-lhe 2,1 milhões de euros (o equivalente a US$ 2,75 milhões), além de um lugar no conselho executivo da empresa que administra os direitos de Stieg. Como se vê, foi uma oferta nem um pouco desprezível. Para ela, porém, é ou tudo ou nada.
Pelo visto, esta história dos direitos autorais de Stieg Larsson ainda está muitíssimo distante de acabar. Provavelmente, teremos capítulos e mais capítulos, com um suspense igual ou até maior do que o dos livros da trilogia (que, provavelmente, se transformará em quadrilogia, posto que o quarto romance tenda a ser considerado apócrifo pelos leitores e pela crítica). Da minha parte, caso morresse antes de concluir minha obra (toc-toc-toc na madeira), bem que gostaria de contar com esse tipo de parceria post-mortem. Ou seja, de alguém que tenha partilhado não apenas meu leito conjugal, mas minhas idéias, meus projetos e meu coração.

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