Saturday, May 14, 2011







Ressurreições diárias

Pedro J. Bondaczuk


A vida é uma sucessão de pequenas mortes, sucedidas das respectivas ressurreições, até o dia em que ocorre a extinção inexorável e definitiva, da qual não conseguimos mais retornar. E não se trata de metáfora. O processo é literal. Periodicamente, todas as nossas células, sem nenhuma exceção, se reproduzem. As matrizes, após a reprodução, morrem. As novas, recém-geradas, assumem suas funções e sustentam a vida do conjunto. Somos, pois, a simulação do universo. Somos vidas compostas de muitas outras vidas, até certo ponto autônomas: as nossas células, que nascem, se alimentam, excretam, se reproduzem e morrem, para que o ciclo recomece por dias, meses, anos e décadas até.

“Ah!, peguei você, Pedrão! Você não escreveu outro dia que a ressurreição é uma impossibilidade biológica? E agora se contradiz e afirma exatamente o contrário!”, deve estar pensando, agora, aquele sujeito chato, que vive vigiando meus textos para neles detectar contradições. Ora, ora, ora, nós, humanos, somos todos contraditórios por natureza, posto que, não necessariamente o tempo todo. Ademais, distingo a intensidade da morte. Melhor diria, das mortes. Há aquelas pequeninas, simbolizadas pela desaparição das células envelhecidas, substituídas por suas descendentes jovens. E há a grande, a imensa, a definitiva, quando todo o organismo entra em colapso e começa a se decompor. Desta não há, de fato, como ressurgir.

Aliás, a esse propósito, um dos meus poetas favoritos, do qual tive o privilégio, orgulho e honra de privar da sua amizade, Mauro Sampaio, compôs um poema basilar, que partilho com vocês tratando do assunto. É intitulado, justamente, de “Ressurreição”, e diz: “Na ressurreição da minha saudade, quanta chuva!/Árvore ao longe!/Mais além, muito além da linha do futuro,/o passado nítido como um dia de sol!/Hoje é dia de festa./A ressurreição dos sonhos em minha saudade!/A ressurreição da vida em meus sonhos!/E a mágoa, não sei de quê é uma saudade estranha./E as angústias tão veladas que lancei à vida,/estão chegando em ciranda com a vida!/hoje o dia é de ressurreição./Rondo o meu passado/e vou tão distraído e tão a gosto/que escorrego e caio por inteiro dentro dele!”

Viver, meus amigos (e inimigos) é uma arte. Após a grande morte, aquela definitiva e inexorável, não ressurgimos das cinzas (ou do pó), como aquela ave mitológica (que consta do brasão da minha cidade, Campinas, e do logotipo da academia de letras da qual faço parte, a Campinense), a fênix. Enxergamos as coisas, via de regra, de forma distorcida, com a lente focada ao inverso que, em vez de aumentar, diminui o tamanho do que é focalizado e, por isso, acabamos por nos dar mal. Abominamos, por exemplo, a rotina e achamos que quando entramos nesse diapasão, estamos em decadência. Ledo engano. O filósofo espanhol Julián Marias, considerado o principal discípulo de José Ortega y Gasset, de cujas idéias comungo, escreveu, em um ensaio publicado em 5 de dezembro de 1987 pelo Caderno de Sábado do “Jornal da Tarde” de São Paulo: “Precisamente a vida cotidiana é que é importante. A vida é cotidiana, primariamente cotidiana. O excepcional, portanto, tem sempre menos importância. O que dá vida a um país, em todos os aspectos, desde a compostura à felicidade, é justamente a vida privada cotidiana, a vida de cada dia”.

Marias, por sinal, tocou em um conceito que poucas pessoas compreendem e que por isso definem com extrema ambigüidade: a felicidade. O que é ser feliz? Como atingir esse estado de bem-aventurança? É possível perpetuá-lo? São questões feitas ao longo do tempo e do espaço e respondidas ora de uma forma, ora de outra, ora de uma terceira e assim por diante, com respostas rigorosamente opostas umas às outras, sem que se chegue a qualquer conclusão. Uma das melhores definições que já li a respeito foi dada não por algum filósofo que tenha se debruçado sobre o tema por toda a sua vida e feito fundamentais descobertas a respeito. Seu autor é um romancista. Mais especificamente, brasileiro. Mais especificamente ainda, gaúcho (meu conterrâneo). Foi Érico Veríssimo.

Um dos livros mais marcantes desse escritor (e que não é o mais citado das dezenas que escreveu), é “Olhai os lírios do campo”. É um tratado de filosofia, mas sem aquele jargão enjoado de que os filósofos se utilizam. As lições são transmitidas de maneira simples, direta, e objetiva, na linguagem cotidiana do povão, bem coloquial, sem perder, todavia, a beleza literária. Já perdi a conta de quantas releituras fiz desse livro e cada vez que o releio, descubro coisas novas, que me passaram despercebidas em releituras anteriores.

Sobre o conceito de felicidade, Érico Veríssimo coloca as seguintes palavras na boca de um dos personagens (na página 284, parágrafo 4º do capítulo 24): “Felicidade é a certeza de que a nossa vida não está se passando inutilmente. São estes intervalos entre um trabalho cansativo e outro trabalho cansativo, estes intervalos em que a gente pode conversar com um amigo, brincar com os filhos, ler um bom livro... O erro é pensar que o conforto permanente, o bem estar que nunca acaba e o gozo de todas as horas são a verdadeira felicidade. Como agora eu vejo claro! É preciso o contraste...”

E Érico não está certo? Aliás, com outras palavras, disse a mesma coisa que o filósofo Marias. Ou seja, que a essência da vida está no cotidiano. Que o ideal seria que, a cada ressurreição do que convencionei chamar de “pequena morte”, devêssemos ressurgir melhorados, se não fisicamente, pelo menos no aspecto espiritual. Porque, como Mauro Sampaio (e provavelmente todas as outras pessoas sensíveis e de bom-senso), “rondo o meu passado/e vou tão distraído e tão a gosto/que escorrego e caio por inteiro dentro dele!”

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