Tributo a uma “jovem senhora”
Pedro J. Bondaczuk
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Hoje chegou o grande dia, em que Brasília – utopia que se fez, literalmente, concreta, ou seja, em vidro, aço e concreto – completa 50 anos e, por estranha ironia, me vejo mudo, sem palavras, gaguejante e cheio de vacilações para expressar meu sentimento a respeito. Não que não tenha o que dizer. Tenho e muito. Há tanta coisa que poderia e deveria ser dita, que nem sei por onde começar...
Quando iniciei esta série de textos, em homenagem a esta que foi a maior saga já empreendida por um povo, pelo menos nos tempos modernos (e sou tentado a achar que em todos os tempos), pensava, ingenuamente, que seria tarefa fácil escrever a respeito. Afinal, não tinha pretensão de redigir nenhum livro sobre a História de Brasília e nem sobre o tema particular que escolhi para abordar, ou seja, sua inserção na literatura nacional, achando, com isso, que a tarefa seria muito mais simples. Enganei-me. Poderia ser, mas não é. Eu não tinha, portanto, noção da encrenca em que havia me metido.
Para falar de Brasília e de tudo o que ela significou e significa para o Brasil (e para o mundo), ou mesmo para reproduzir como os escritores a vêem e o sentimento que ela lhes desperta, precisaria escrever não duas dezenas de textos desconexos, como estes, mas toda uma vasta coleção, com centenas de volumes. E tudo num tempo equivalente, no mínimo, a cada ano que a cidade já contabiliza. E ainda assim... deixaria muita coisa de fora.
É certo que a minha proposta não foi sequer a de escrever um razoável ensaio sobre o tema que escolhi. Foi a de fazer descompromissadas considerações à margem, simples e despretensiosos comentários, à medida que avançassem as minhas pesquisas, feitas às pressas, em horas roubadas do descanso e do lazer, em uma quantidade impressionante de fontes. Ainda assim, passando os olhos em tudo o que escrevi nestas três últimas semanas, sinto-me envergonhado do tratamento que dei a esta “jovem dama”, que completa, hoje, meio século de existência. Ela merece mais, muito mais do que isso, e, sobretudo, um escriba mais competente do que eu.
Concentrando-me, basicamente, na poesia, gênero preferencial dos que se propõem a homenagear a cidade (por seu futurismo, sua modernidade e certo ar místico até, para não dizer por sua exótica beleza), cataloguei cerca de três mil poemas de poetas alheios a ela, muitos dos quais sequer puseram os pés, ali, algum dia. E dos brasilienses? Reuni mais de cinco mil produções! Como citar todo o mundo, sem cometer injustiças e omissões e nem descambar para o ridículo? Impossível! Absoluta e irredutivelmente impossível!
O que posso fazer (e fiz até aqui), é citar um ou outro, meio que aleatoriamente, e tecer uma ou outra consideração a respeito, que, embora superficial, tem o caráter de registro. Mesmo que quisesse, não poderia agir em relação a Brasília como agiu seu mentor, Juscelino Kubitschek de Oliveira, em relação ao desenvolvimento nacional, do qual a cidade deveria ser (e de fato vem sendo) o dínamo: “fazer 50 anos em cinco”!
Tivesse tempo e vivesse tanto, precisaria de meio século para contar (e ainda assim superficialmente, com certeza) esta saga de heroísmo, fé e coragem de tantos e tantos e tantos heróis anônimos. A intenção inicial era a de encerrar hoje esta série de textos, em que busco homenagear uma cidade que me é tão cara, porquanto na sua construção há pequena parcela do suor, da crença e do delírio do meu querido pai, que um dia foi candango, se orgulhou disso e assumiu esse título como se fora um sobrenome, carregando-o no peito até a morte.
Quando se fala de Brasília, vêm a mente, de imediato, figuras como JK, como os que a arquitetaram – o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer – como os que a orquestraram, os empreiteiros Bernardo Sayão e Israel Pinheiro e como vários outros nomes, todos ligados, todavia, de uma forma ou de outra, ao poder.
Omitem-se, porém, os que fizeram com que o sonho desses pioneiros citados fosse mais do que meras idealizações (que pelo projeto no papel beiravam à insanidade e ao delírio) e se transformassem em palácios, edifícios, monumentos, quadras, superquadras, avenidas, viadutos etc.etc.etc.
Milhares e milhares de brasileiros anônimos, a maioria dos quais jamais havia sequer pisado antes em um canteiro de obras, vaqueiros, agricultores, pequenos artesãos, aventureiros, seringueiros e vai por aí afora, deixaram, ali, seu suor, sangue e lágrimas. Centenas e centenas de operários morreram durante a construção, mas as obras não pararam. O “ciclópico bebê” tinha pressa de nascer, e havia até data estipulada para isso que não comportava atrasos (21 de abril de 1960). Por isso, o trabalho não poderia parar. Quantos desses trabalhadores não foram sepultados em valas comuns, sem pompas e nem circunstâncias, sem nem mesmo alguma tosca cruz de madeira a marcar suas coletivas sepulturas?!!!
Dizem, até (não posso provar, mas não duvido) que muitos corpos, simplesmente, receberam toneladas de concreto por cima e se incorporaram aos alicerces dos seus gigantescos e monumentais edifícios. Testemunhas oculares (e meu pai foi uma delas) asseguram, embora sem nenhuma comprovação estatística, que as mortes em acidentes do trabalho eram, na ocasião, em média, de vinte por dia. Outros garantem que essa cifra era bem mais elevada, muito maior. A cidade tinha pressa de nascer.
As obras eram tocadas em ritmo frenético, febril, com boa parte dos trabalhadores virando dois turnos consecutivos, com parcas de duas a quatro horas de repouso, se tanto. Uma loucura! Trabalhavam-se 24 horas por dia, todos os dias da semana, em todas as semanas do ano. Na época, os acidentes de trabalho na construção civil eram comuns, diria corriqueiros, em todo o País, até em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Ale4gre, entre outras.. Isso, em obras que não tinham prazos tão estreitos, quanto os de Brasília. Ali... era uma carnificina.
Ademais, o instrumental, as ferramentas e os métodos de construção eram dos mais toscos, primitivos e precários. Tudo era feito no muque mesmo, nos braços fortes e viris do trabalhador brasileiro, mesmo do mais raquítico (a maioria, mal-alimentada e portando toda a sorte de doenças). Por isso, fico furioso quando tentam impingir ao tão nosso operário, genericamente, o estereótipo imbecil e preconceituoso de “folgado”, de preguiçoso, de alguém que não é lá tão amigo do trabalho. Imaginem se fosse!
Sei que numa data como essa deveria estar tecendo loas – como os políticos, certamente, estão fazendo nas várias cerimônias em comemoração ao cinqüentenário. Por este ser espaço voltado basicamente à Literatura, deveria, pelo menos, estar reproduzindo poemas e mais poemas, exaltando a grandeza, o futurismo e a beleza de Brasília.
Até farei isso, oportunamente. Mas hoje, limitar-me-ei a render tributo aos que deram a vida para fazer dos poemas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer (seus projetos foram, na verdade, isso) em poesia de concreto, vidro e aço, ou seja, os milhares de candangos que transformaram em realidade o que poderia não passar de fantasia.
Aos tantos que morreram em acidentes na construção da Capital da Esperança. e que não tiveram, sequer, direito a uma reles cova rasa, com tosca cruz de madeira marcando o local em que seus corpos cansados repousam para sempre, dedico este “Epitáfio”, escrito pelo poeta brasiliense Joanyr de Oliveira, autor de uma das melhores antologias sobre a cidade intitulada “Brasília na poesia brasileira”.
Epitáfio
"Os casulos do silêncio
Recolhem meu rosto,
Meu canto e meu nome.
Entre arcanjos e estrelas,
Minha essência navega
Doce é o sabor do Infinito".
Descansem em paz, anônimos guerreiros, heróis de verdade da nacionalidade nesta magnífica e inigualável saga que torna a epopéia dos Lusíadas muito pequena! E parabéns, “jovem dama”, por seus cinqüenta anos de existência e de esperança!
Obs.: Texto escrito em 21 de abril de 2010, em homenagem ao cinquentenário de Brasília.
Pedro J. Bondaczuk
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Hoje chegou o grande dia, em que Brasília – utopia que se fez, literalmente, concreta, ou seja, em vidro, aço e concreto – completa 50 anos e, por estranha ironia, me vejo mudo, sem palavras, gaguejante e cheio de vacilações para expressar meu sentimento a respeito. Não que não tenha o que dizer. Tenho e muito. Há tanta coisa que poderia e deveria ser dita, que nem sei por onde começar...
Quando iniciei esta série de textos, em homenagem a esta que foi a maior saga já empreendida por um povo, pelo menos nos tempos modernos (e sou tentado a achar que em todos os tempos), pensava, ingenuamente, que seria tarefa fácil escrever a respeito. Afinal, não tinha pretensão de redigir nenhum livro sobre a História de Brasília e nem sobre o tema particular que escolhi para abordar, ou seja, sua inserção na literatura nacional, achando, com isso, que a tarefa seria muito mais simples. Enganei-me. Poderia ser, mas não é. Eu não tinha, portanto, noção da encrenca em que havia me metido.
Para falar de Brasília e de tudo o que ela significou e significa para o Brasil (e para o mundo), ou mesmo para reproduzir como os escritores a vêem e o sentimento que ela lhes desperta, precisaria escrever não duas dezenas de textos desconexos, como estes, mas toda uma vasta coleção, com centenas de volumes. E tudo num tempo equivalente, no mínimo, a cada ano que a cidade já contabiliza. E ainda assim... deixaria muita coisa de fora.
É certo que a minha proposta não foi sequer a de escrever um razoável ensaio sobre o tema que escolhi. Foi a de fazer descompromissadas considerações à margem, simples e despretensiosos comentários, à medida que avançassem as minhas pesquisas, feitas às pressas, em horas roubadas do descanso e do lazer, em uma quantidade impressionante de fontes. Ainda assim, passando os olhos em tudo o que escrevi nestas três últimas semanas, sinto-me envergonhado do tratamento que dei a esta “jovem dama”, que completa, hoje, meio século de existência. Ela merece mais, muito mais do que isso, e, sobretudo, um escriba mais competente do que eu.
Concentrando-me, basicamente, na poesia, gênero preferencial dos que se propõem a homenagear a cidade (por seu futurismo, sua modernidade e certo ar místico até, para não dizer por sua exótica beleza), cataloguei cerca de três mil poemas de poetas alheios a ela, muitos dos quais sequer puseram os pés, ali, algum dia. E dos brasilienses? Reuni mais de cinco mil produções! Como citar todo o mundo, sem cometer injustiças e omissões e nem descambar para o ridículo? Impossível! Absoluta e irredutivelmente impossível!
O que posso fazer (e fiz até aqui), é citar um ou outro, meio que aleatoriamente, e tecer uma ou outra consideração a respeito, que, embora superficial, tem o caráter de registro. Mesmo que quisesse, não poderia agir em relação a Brasília como agiu seu mentor, Juscelino Kubitschek de Oliveira, em relação ao desenvolvimento nacional, do qual a cidade deveria ser (e de fato vem sendo) o dínamo: “fazer 50 anos em cinco”!
Tivesse tempo e vivesse tanto, precisaria de meio século para contar (e ainda assim superficialmente, com certeza) esta saga de heroísmo, fé e coragem de tantos e tantos e tantos heróis anônimos. A intenção inicial era a de encerrar hoje esta série de textos, em que busco homenagear uma cidade que me é tão cara, porquanto na sua construção há pequena parcela do suor, da crença e do delírio do meu querido pai, que um dia foi candango, se orgulhou disso e assumiu esse título como se fora um sobrenome, carregando-o no peito até a morte.
Quando se fala de Brasília, vêm a mente, de imediato, figuras como JK, como os que a arquitetaram – o urbanista Lúcio Costa e o arquiteto Oscar Niemeyer – como os que a orquestraram, os empreiteiros Bernardo Sayão e Israel Pinheiro e como vários outros nomes, todos ligados, todavia, de uma forma ou de outra, ao poder.
Omitem-se, porém, os que fizeram com que o sonho desses pioneiros citados fosse mais do que meras idealizações (que pelo projeto no papel beiravam à insanidade e ao delírio) e se transformassem em palácios, edifícios, monumentos, quadras, superquadras, avenidas, viadutos etc.etc.etc.
Milhares e milhares de brasileiros anônimos, a maioria dos quais jamais havia sequer pisado antes em um canteiro de obras, vaqueiros, agricultores, pequenos artesãos, aventureiros, seringueiros e vai por aí afora, deixaram, ali, seu suor, sangue e lágrimas. Centenas e centenas de operários morreram durante a construção, mas as obras não pararam. O “ciclópico bebê” tinha pressa de nascer, e havia até data estipulada para isso que não comportava atrasos (21 de abril de 1960). Por isso, o trabalho não poderia parar. Quantos desses trabalhadores não foram sepultados em valas comuns, sem pompas e nem circunstâncias, sem nem mesmo alguma tosca cruz de madeira a marcar suas coletivas sepulturas?!!!
Dizem, até (não posso provar, mas não duvido) que muitos corpos, simplesmente, receberam toneladas de concreto por cima e se incorporaram aos alicerces dos seus gigantescos e monumentais edifícios. Testemunhas oculares (e meu pai foi uma delas) asseguram, embora sem nenhuma comprovação estatística, que as mortes em acidentes do trabalho eram, na ocasião, em média, de vinte por dia. Outros garantem que essa cifra era bem mais elevada, muito maior. A cidade tinha pressa de nascer.
As obras eram tocadas em ritmo frenético, febril, com boa parte dos trabalhadores virando dois turnos consecutivos, com parcas de duas a quatro horas de repouso, se tanto. Uma loucura! Trabalhavam-se 24 horas por dia, todos os dias da semana, em todas as semanas do ano. Na época, os acidentes de trabalho na construção civil eram comuns, diria corriqueiros, em todo o País, até em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Ale4gre, entre outras.. Isso, em obras que não tinham prazos tão estreitos, quanto os de Brasília. Ali... era uma carnificina.
Ademais, o instrumental, as ferramentas e os métodos de construção eram dos mais toscos, primitivos e precários. Tudo era feito no muque mesmo, nos braços fortes e viris do trabalhador brasileiro, mesmo do mais raquítico (a maioria, mal-alimentada e portando toda a sorte de doenças). Por isso, fico furioso quando tentam impingir ao tão nosso operário, genericamente, o estereótipo imbecil e preconceituoso de “folgado”, de preguiçoso, de alguém que não é lá tão amigo do trabalho. Imaginem se fosse!
Sei que numa data como essa deveria estar tecendo loas – como os políticos, certamente, estão fazendo nas várias cerimônias em comemoração ao cinqüentenário. Por este ser espaço voltado basicamente à Literatura, deveria, pelo menos, estar reproduzindo poemas e mais poemas, exaltando a grandeza, o futurismo e a beleza de Brasília.
Até farei isso, oportunamente. Mas hoje, limitar-me-ei a render tributo aos que deram a vida para fazer dos poemas de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer (seus projetos foram, na verdade, isso) em poesia de concreto, vidro e aço, ou seja, os milhares de candangos que transformaram em realidade o que poderia não passar de fantasia.
Aos tantos que morreram em acidentes na construção da Capital da Esperança. e que não tiveram, sequer, direito a uma reles cova rasa, com tosca cruz de madeira marcando o local em que seus corpos cansados repousam para sempre, dedico este “Epitáfio”, escrito pelo poeta brasiliense Joanyr de Oliveira, autor de uma das melhores antologias sobre a cidade intitulada “Brasília na poesia brasileira”.
Epitáfio
"Os casulos do silêncio
Recolhem meu rosto,
Meu canto e meu nome.
Entre arcanjos e estrelas,
Minha essência navega
Doce é o sabor do Infinito".
Descansem em paz, anônimos guerreiros, heróis de verdade da nacionalidade nesta magnífica e inigualável saga que torna a epopéia dos Lusíadas muito pequena! E parabéns, “jovem dama”, por seus cinqüenta anos de existência e de esperança!
Obs.: Texto escrito em 21 de abril de 2010, em homenagem ao cinquentenário de Brasília.
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