Samba-enredo
Pedro J. Bondaczuk
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Se você tiver que escolher um cenário futurista e moderno para palco de um romance de caráter surrealista, certamente escolherá Brasília. É o cenário ideal, feito a caráter, para esse tipo de história. Poucos me contestarão, pelo menos com fundamentos lógicos.
Todavia, se você tiver na cabeça um bom enredo que se passe no Carnaval, qual será a cidade de sua escolha, onde os personagens se amem, se odeiem, conflitem entre si e haja um final feliz ou trágico, ao gosto do autor? Nove entre dez escritores, com certeza, responderão: Rio de Janeiro. E o único que não fizer, por algum motivo, essa opção, provavelmente optará por São Paulo. Raros preferirão Salvador, Recife, Belo Horizonte ou Porto Alegre, com todo o respeito aos foliões dessas cidades. A televisão fez a cabeça dos brasileiros nesse sentido. E como os escritores emergem do povo...
Os desfiles do Anhembi, diga-se de passagem, evoluíram muito nos últimos anos, a ponto de se desmentir a afirmação que Vinicius de Moraes fez certa feita (para zoar os paulistas, já que, de fato, não pensava dessa maneira), de que São Paulo era “o túmulo do samba”.
Os mais esnobes, quem sabe, escolheriam para cenário cidades do Exterior que tenham carnavais tradicionais, alguns até centenários, como Veneza, Nice, Munique ou até mesmo Nova Orleans. Mas nenhuma delas chegam, nem remotamente, sequer aos pés do Rio. Os europeus (e norte-americanos) não levam jeito para sambar. E é na Cidade Maravilhosa que fica o “templo do samba”, o sambódromo da Marquês de Sapucaí, onde se realiza, todos os anos, o maior espetáculo da terra.
Todavia, o escritor, professor e diplomata João Almino “remou contra a correnteza” e se deu bem. Situou o palco de seu romance “Samba-enredo” em Brasília. Produziu uma história de tirar o fôlego, digna de ser lida, analisada e imitada. É um romance para quem gosta de raciocinar e que não se limite a se ater ao enredo.
“Brasília, no Carnaval?!”, perguntarão vocês, em tom de contestação. Pois é. Almino conseguiu fazer da incipiente folia brasiliense uma obra-prima. Não, claro, por seus desfiles (nem sei se por lá há escolas de samba) e muito menos por multidões seguindo atrás de trios-elétricos. Mas por ser lá a sede do governo federal, onde ficam os presidentes. Opa! Por um triz que não acabei revelando a trama da história. Isso deve ser reservado para o “grand finale”.
“Samba-enredo” é uma obra mais elaborada do que o primeiro romance de João Almino, “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Em vez do “narrador cego”, da história anterior, nesta o personagem onipresente é um computador. Não, todavia, um qualquer. Este tem uma característica peculiar: tem sentimentos. Em vez da sua nova dona, a pessoa que o achou no lixo, Sílvia, ser apaixonada por seu computador (na verdade, um laptop), ocorre o inverso. Este é que se apaixona por ela.
O professor Jorge Schwarz sintetiza, na orelha do livro, a trama originalíssima do autor: “O Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelinho de intrigas amorosas e palacianas como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes”.
Só por essa ligeira indicação, percebe-se que se trata de um enredo apimentado e dos mais difíceis de se desenvolver com verossimilhança. O poeta e crítico literário Régis Bonvicino, em seu comentário sobre essa obra do escritor potiguar, intitulado “A carnavalização na obra de João Almino” – publicado no suplemento “Idéias”, do Jornal do Brasil, em 27 de agosto de 19094 – constata: “Um dos principais méritos de ‘Samba-enredo’ é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’. Até a sóbria, mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do ‘ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver’ – abre ‘Samba-enredo’: ‘Dedico às almas errantes/e aos fragmentos de cérebros deslocados’”.
Bárbara Freitag resume da seguinte maneira o cerne da trama dessa história instigante: “O narrador sem corpo, mas não imaterial, deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop jogado no lixo. No seu disco rígido encontram-se as anotações de Ana, escritora e amante do presidente. GG ou ‘Gigi’, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de Carnaval em Brasília nos anos noventa”.
Em outro trecho, Bárbara apresenta o cerne de toda a trama: “Em verdade, o presidente não tinha tomado o rumo do Palácio, mas estava a caminho da fazenda da sua irmã. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antonio envia um bilhete para sua mulher e filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede, em lugar de choro e vela, que o homenageiem com um bom samba-enredo”.
Paulo Antonio é morto, com um único tiro na nuca. “O cadáver é enterrado, ali mesmo no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico”.
Apesar do enredo desenvolver-se em um Carnaval – e de Brasília, nesse aspecto, perder de longe para a maioria das cidades que promovem essa festa com muito maior luxo, entusiasmo e beleza – a metrópole do Planalto Central tem tudo a ver com a história, que ganha verossimilhança ao se ter em conta o comportamento esquivo, usual, dos políticos que por lá transitam e lhe dão vida. João Almino compôs, portanto, um portentoso “samba-enredo”, para compositor algum, ou o mais exigente dos carnavalescos de escolas de samba, botarem defeito.
Pedro J. Bondaczuk
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Se você tiver que escolher um cenário futurista e moderno para palco de um romance de caráter surrealista, certamente escolherá Brasília. É o cenário ideal, feito a caráter, para esse tipo de história. Poucos me contestarão, pelo menos com fundamentos lógicos.
Todavia, se você tiver na cabeça um bom enredo que se passe no Carnaval, qual será a cidade de sua escolha, onde os personagens se amem, se odeiem, conflitem entre si e haja um final feliz ou trágico, ao gosto do autor? Nove entre dez escritores, com certeza, responderão: Rio de Janeiro. E o único que não fizer, por algum motivo, essa opção, provavelmente optará por São Paulo. Raros preferirão Salvador, Recife, Belo Horizonte ou Porto Alegre, com todo o respeito aos foliões dessas cidades. A televisão fez a cabeça dos brasileiros nesse sentido. E como os escritores emergem do povo...
Os desfiles do Anhembi, diga-se de passagem, evoluíram muito nos últimos anos, a ponto de se desmentir a afirmação que Vinicius de Moraes fez certa feita (para zoar os paulistas, já que, de fato, não pensava dessa maneira), de que São Paulo era “o túmulo do samba”.
Os mais esnobes, quem sabe, escolheriam para cenário cidades do Exterior que tenham carnavais tradicionais, alguns até centenários, como Veneza, Nice, Munique ou até mesmo Nova Orleans. Mas nenhuma delas chegam, nem remotamente, sequer aos pés do Rio. Os europeus (e norte-americanos) não levam jeito para sambar. E é na Cidade Maravilhosa que fica o “templo do samba”, o sambódromo da Marquês de Sapucaí, onde se realiza, todos os anos, o maior espetáculo da terra.
Todavia, o escritor, professor e diplomata João Almino “remou contra a correnteza” e se deu bem. Situou o palco de seu romance “Samba-enredo” em Brasília. Produziu uma história de tirar o fôlego, digna de ser lida, analisada e imitada. É um romance para quem gosta de raciocinar e que não se limite a se ater ao enredo.
“Brasília, no Carnaval?!”, perguntarão vocês, em tom de contestação. Pois é. Almino conseguiu fazer da incipiente folia brasiliense uma obra-prima. Não, claro, por seus desfiles (nem sei se por lá há escolas de samba) e muito menos por multidões seguindo atrás de trios-elétricos. Mas por ser lá a sede do governo federal, onde ficam os presidentes. Opa! Por um triz que não acabei revelando a trama da história. Isso deve ser reservado para o “grand finale”.
“Samba-enredo” é uma obra mais elaborada do que o primeiro romance de João Almino, “Idéias para onde passar o fim do mundo”. Em vez do “narrador cego”, da história anterior, nesta o personagem onipresente é um computador. Não, todavia, um qualquer. Este tem uma característica peculiar: tem sentimentos. Em vez da sua nova dona, a pessoa que o achou no lixo, Sílvia, ser apaixonada por seu computador (na verdade, um laptop), ocorre o inverso. Este é que se apaixona por ela.
O professor Jorge Schwarz sintetiza, na orelha do livro, a trama originalíssima do autor: “O Carnaval que atravessa o romance tem Brasília e seu torvelinho de intrigas amorosas e palacianas como espaço privilegiado. A trama tem por centro o seqüestro e as relações amorosas e clandestinas do presidente do Brasil, Paulo Antonio Fernandes”.
Só por essa ligeira indicação, percebe-se que se trata de um enredo apimentado e dos mais difíceis de se desenvolver com verossimilhança. O poeta e crítico literário Régis Bonvicino, em seu comentário sobre essa obra do escritor potiguar, intitulado “A carnavalização na obra de João Almino” – publicado no suplemento “Idéias”, do Jornal do Brasil, em 27 de agosto de 19094 – constata: “Um dos principais méritos de ‘Samba-enredo’ é o de retomar para a prosa de ficção brasileira o diálogo com Machado de Assis, especialmente o Machado de Assis de ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’. Até a sóbria, mas existente visualidade de escritura do romance remete a Machado. Uma espécie de poema – à moda do ‘ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver’ – abre ‘Samba-enredo’: ‘Dedico às almas errantes/e aos fragmentos de cérebros deslocados’”.
Bárbara Freitag resume da seguinte maneira o cerne da trama dessa história instigante: “O narrador sem corpo, mas não imaterial, deste romance é uma máquina, mais especificamente um computador portátil, um laptop jogado no lixo. No seu disco rígido encontram-se as anotações de Ana, escritora e amante do presidente. GG ou ‘Gigi’, como se autodenomina o computador sem dono, começa a decodificar os textos cifrados que guarda em sua memória. Nesse processo traz à tona os textos com os quais havia sido alimentado por Ana, antes de ser jogado fora. Eram anotações feitas durante as festividades de Carnaval em Brasília nos anos noventa”.
Em outro trecho, Bárbara apresenta o cerne de toda a trama: “Em verdade, o presidente não tinha tomado o rumo do Palácio, mas estava a caminho da fazenda da sua irmã. Na estrada deserta seu carro é assaltado por homens mascarados que o seqüestram e levam para o meio do cerrado. Aí o obrigam a escrever uma carta, na qual informa o valor do resgate exigido. Junto com a carta dirigida ao povo brasileiro, Paulo Antonio envia um bilhete para sua mulher e filha. Está convencido de que o seqüestro tem razões políticas e aposta em sua libertação para, finalmente, dar início às obras de reformas das quais a sociedade brasileira tanto necessita. Caso seja sacrificado, pede, em lugar de choro e vela, que o homenageiem com um bom samba-enredo”.
Paulo Antonio é morto, com um único tiro na nuca. “O cadáver é enterrado, ali mesmo no anonimato do cerrado. Os seqüestradores haviam assaltado o carro errado, o plano era capturar um empresário rico”.
Apesar do enredo desenvolver-se em um Carnaval – e de Brasília, nesse aspecto, perder de longe para a maioria das cidades que promovem essa festa com muito maior luxo, entusiasmo e beleza – a metrópole do Planalto Central tem tudo a ver com a história, que ganha verossimilhança ao se ter em conta o comportamento esquivo, usual, dos políticos que por lá transitam e lhe dão vida. João Almino compôs, portanto, um portentoso “samba-enredo”, para compositor algum, ou o mais exigente dos carnavalescos de escolas de samba, botarem defeito.
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