Cidades decadentes
Pedro J. Bondaczuk
Você já notou como “as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude, sem se deterem no antigo”? Essa observação, aliás, não é minha, mas do antropólogo, etnólogo e filósofo Claude Lévi-Strauss. A constatação está no seu célebre livro “Tristes Trópicos”, best-seller mundial e que merece ser lido por todos. Conscientemente, nunca pensei nisso, embora inconscientemente talvez a ideia me tivesse passado pela cabeça.
Notem que Strauss não se referiu a nenhuma cidade brasileira em particular, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e até mesmo Brasília, que prestes a completar seu primeiro cinqüentenário, em 21 de abril de 2010, já apresenta, em algumas regiões específicas, sinais de decrepitude. E sequer passou pelo “antigo”. Ainda não houve tempo.
Essa decadência, sem que se passe sequer pela antiguidade conservada como patrimônio histórico, pode ser observada, também, em Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Caracas, Bogotá e qualquer outra metrópole latino-americana ou mesmo das três Américas. Falta-nos, ainda, o sentido da tradição, que deve caminhar sempre paralela à modernidade. Afinal, quem não tem passado... dificilmente terá um futuro.
Nesse caso, Strauss observou as cidades (provavelmente tomou por base São Paulo, onde residiu e lecionou) não somente com o olhar objetivo do cientista, mas com a subjetividade característica do escritor. E expressou sua conclusão com clareza e exatidão, como compete a quem pretende fazer literatura de primeira ordem.
Claro que não pretendo fazer nenhum estudo antropológico a respeito (até porque não tenho formação acadêmica para tal) e este texto sequer tem a menor pretensão de ser um ensaio, mas mera provocação.
Peço licença, porém, para transcrever outro trecho de Lévi-Strauss, este um tanto mais extenso, que nos chama a atenção para outro aspecto da urbanização que raramente notamos (se é que o fazemos).
“A vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada de civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplo, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, mas que torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais, mas sempre vivas superstições. Tratar-se-ia, de resto, de superstições?”
Neste trecho, quem falou foi o cientista, não tanto o escritor, apesar da riqueza e da variedade das metáforas de que Strauss se vale. O fenômeno da urbanização não é novo. Pelo contrário, já é bastante antigo. As primeiras cidades, na Índia, na China e no Egito, têm, pelo menos, cinco milênios.
Ocorre que até não faz muito tempo – no século XIX, por exemplo – apenas 15% da população mundial, se tanto, habitava em cidades. Hoje, há uma brutal concentração nessas “arapucas” de cimento e asfalto. Cerca de 80% dos quase sete bilhões de habitantes da Terra concentram-se nas cidades. É pertinente, pois, e oportuno, que estudemos esse fenômeno e tratemos dele cada vez com mais argúcia e fidelidade.
Surge-nos outra questão: pode o cientista de formação se aventurar, impunemente, no mundo das letras e produzir literatura de primeira linha, como qualquer bom escritor? Teoricamente, sim. Usualmente, não. O escritor e o cientista são condicionados a raciocinar de formas opostas. O primeiro, enfatiza a subjetividade. O segundo é, essencialmente, objetivo.
O escritor, por seu turno, quase sempre que se aventura a escrever sobre ciência, se enrola todo, confunde suas leis e conceitos básicos e não faz nem uma coisa e nem outra. Ou seja, nem texto científico e nem literatura. Afinal, ciência não é, a rigor, a sua “praia”.
Há, todavia, exceções, e de parte a parte. Uma delas é “Tristes Trópicos”, considerado um dos principais livros do século XX. A obra é tão rica, no aspecto literário, que chegou a haver proposta para que concorresse ao Prêmio Goncourt. Todavia, os responsáveis por essa premiação, a contragosto, tiveram que recusar a postulação. O motivo é que não se tratava de romance. E o prêmio é destinado exclusivamente a ficcionistas.
No livro, Lévi-Strauss relata uma viagem que empreendeu ao Brasil nos anos 30. Embora se tratasse, como ressaltei, de austero e discreto cientista, o autor decidiu produzir obra diferente da que se poderia esperar dele: pessoal, audaciosa e espontânea, quase que uma crônica, apesar da sua extensão, ou seja, das suas 500 páginas.
Strauss traça, em “Tristes Trópicos”, a trajetória das relações entre o velho e o novo mundo. Analisa o lugar do homem na natureza, além do sentido da civilização e do progresso. O livro foi recebido com entusiasmo pela comunidade literária, mas com indisfarçável mau-humor pela confraria dos cientistas.
A ensaísta Catherine Clément assim se referiu à obra: “Insólitas, desconcertantes, desvairadas, saltando épocas, os anos, as estações, palpitantes, as fulgurações de ‘Tristes Trópicos’ são do tipo que traçam caminhos na noite. E isso ainda perdura”.
Se você, amável leitor, ainda não leu esse livro, leia. Certamente não irá se arrepender. E verá que, sem perder a objetividade característica da sua disciplina, o cientista pode, sim, produzir excelente obra literária, repleta de emoção e verdade, quando se propõe a tanto.
Strauss, entre outras coisas, faz observações curiosas, mas todas pertinentes, sobre sociedades indígenas brasileiras. Mas não só isso. Praticamente disseca nossos costumes, tradições, crenças, cultura, e nossa peculiar maneira de ser, tudo entremeado de reflexões filosóficas a respeito de inúmeros temas, entre os quais as concepções de progresso e de civilização. Por tudo isso, “Tristes Trópicos” é um livro imperdível que, embora de conteúdo científico, é genuína e excelente literatura.
Pedro J. Bondaczuk
Você já notou como “as cidades do Novo Mundo passam diretamente à decrepitude, sem se deterem no antigo”? Essa observação, aliás, não é minha, mas do antropólogo, etnólogo e filósofo Claude Lévi-Strauss. A constatação está no seu célebre livro “Tristes Trópicos”, best-seller mundial e que merece ser lido por todos. Conscientemente, nunca pensei nisso, embora inconscientemente talvez a ideia me tivesse passado pela cabeça.
Notem que Strauss não se referiu a nenhuma cidade brasileira em particular, como São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Salvador e até mesmo Brasília, que prestes a completar seu primeiro cinqüentenário, em 21 de abril de 2010, já apresenta, em algumas regiões específicas, sinais de decrepitude. E sequer passou pelo “antigo”. Ainda não houve tempo.
Essa decadência, sem que se passe sequer pela antiguidade conservada como patrimônio histórico, pode ser observada, também, em Buenos Aires, Montevidéu, Assunção, Caracas, Bogotá e qualquer outra metrópole latino-americana ou mesmo das três Américas. Falta-nos, ainda, o sentido da tradição, que deve caminhar sempre paralela à modernidade. Afinal, quem não tem passado... dificilmente terá um futuro.
Nesse caso, Strauss observou as cidades (provavelmente tomou por base São Paulo, onde residiu e lecionou) não somente com o olhar objetivo do cientista, mas com a subjetividade característica do escritor. E expressou sua conclusão com clareza e exatidão, como compete a quem pretende fazer literatura de primeira ordem.
Claro que não pretendo fazer nenhum estudo antropológico a respeito (até porque não tenho formação acadêmica para tal) e este texto sequer tem a menor pretensão de ser um ensaio, mas mera provocação.
Peço licença, porém, para transcrever outro trecho de Lévi-Strauss, este um tanto mais extenso, que nos chama a atenção para outro aspecto da urbanização que raramente notamos (se é que o fazemos).
“A vida urbana apresenta um estranho contraste. Embora represente a forma mais completa e requintada de civilização, em virtude da concentração humana excepcional que realiza em espaço reduzido e da duração de seu ciclo, precipita no cadinho atitudes inconscientes, cada uma delas infinitesimal mas que, devido ao número de indivíduos que as manifestam do mesmo modo e em grau idêntico, se tornam capazes de engendrar grandes efeitos. Como exemplo, o crescimento das cidades de leste para oeste e a polarização do luxo e da miséria segundo este eixo, mas que torna incompreensível se não reconhecermos esse privilégio – ou essa servidão – das cidades que consiste, à maneira dum microscópio e, graças ao aumento que lhe é peculiar, em fazer surgir na lâmina da consciência coletiva o borbulhar microbiano das nossas ancestrais, mas sempre vivas superstições. Tratar-se-ia, de resto, de superstições?”
Neste trecho, quem falou foi o cientista, não tanto o escritor, apesar da riqueza e da variedade das metáforas de que Strauss se vale. O fenômeno da urbanização não é novo. Pelo contrário, já é bastante antigo. As primeiras cidades, na Índia, na China e no Egito, têm, pelo menos, cinco milênios.
Ocorre que até não faz muito tempo – no século XIX, por exemplo – apenas 15% da população mundial, se tanto, habitava em cidades. Hoje, há uma brutal concentração nessas “arapucas” de cimento e asfalto. Cerca de 80% dos quase sete bilhões de habitantes da Terra concentram-se nas cidades. É pertinente, pois, e oportuno, que estudemos esse fenômeno e tratemos dele cada vez com mais argúcia e fidelidade.
Surge-nos outra questão: pode o cientista de formação se aventurar, impunemente, no mundo das letras e produzir literatura de primeira linha, como qualquer bom escritor? Teoricamente, sim. Usualmente, não. O escritor e o cientista são condicionados a raciocinar de formas opostas. O primeiro, enfatiza a subjetividade. O segundo é, essencialmente, objetivo.
O escritor, por seu turno, quase sempre que se aventura a escrever sobre ciência, se enrola todo, confunde suas leis e conceitos básicos e não faz nem uma coisa e nem outra. Ou seja, nem texto científico e nem literatura. Afinal, ciência não é, a rigor, a sua “praia”.
Há, todavia, exceções, e de parte a parte. Uma delas é “Tristes Trópicos”, considerado um dos principais livros do século XX. A obra é tão rica, no aspecto literário, que chegou a haver proposta para que concorresse ao Prêmio Goncourt. Todavia, os responsáveis por essa premiação, a contragosto, tiveram que recusar a postulação. O motivo é que não se tratava de romance. E o prêmio é destinado exclusivamente a ficcionistas.
No livro, Lévi-Strauss relata uma viagem que empreendeu ao Brasil nos anos 30. Embora se tratasse, como ressaltei, de austero e discreto cientista, o autor decidiu produzir obra diferente da que se poderia esperar dele: pessoal, audaciosa e espontânea, quase que uma crônica, apesar da sua extensão, ou seja, das suas 500 páginas.
Strauss traça, em “Tristes Trópicos”, a trajetória das relações entre o velho e o novo mundo. Analisa o lugar do homem na natureza, além do sentido da civilização e do progresso. O livro foi recebido com entusiasmo pela comunidade literária, mas com indisfarçável mau-humor pela confraria dos cientistas.
A ensaísta Catherine Clément assim se referiu à obra: “Insólitas, desconcertantes, desvairadas, saltando épocas, os anos, as estações, palpitantes, as fulgurações de ‘Tristes Trópicos’ são do tipo que traçam caminhos na noite. E isso ainda perdura”.
Se você, amável leitor, ainda não leu esse livro, leia. Certamente não irá se arrepender. E verá que, sem perder a objetividade característica da sua disciplina, o cientista pode, sim, produzir excelente obra literária, repleta de emoção e verdade, quando se propõe a tanto.
Strauss, entre outras coisas, faz observações curiosas, mas todas pertinentes, sobre sociedades indígenas brasileiras. Mas não só isso. Praticamente disseca nossos costumes, tradições, crenças, cultura, e nossa peculiar maneira de ser, tudo entremeado de reflexões filosóficas a respeito de inúmeros temas, entre os quais as concepções de progresso e de civilização. Por tudo isso, “Tristes Trópicos” é um livro imperdível que, embora de conteúdo científico, é genuína e excelente literatura.
No comments:
Post a Comment