Tuesday, April 13, 2010




Ainda a utopia e a desilusão

* Pedro J. Bondaczuk
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Brasília é, simultaneamente, a miraculosa concretização de uma utopia e foco da desilusão de muitos. E por que há tantos desiludidos com ela? Muitos deles sequer vivem lá e nem mesmo a conhecem pessoalmente. Essa desilusão, por acaso, foi despertada pela cidade em si, por suas eventuais deficiências e complicadores que tornem ruim a vida de seus habitantes? Não, não e não. Longe disso.
A desilusão foi provocada porque seus mentores, os heróis que tornaram possível essa saga magnífica e não valorizada devidamente, esperavam que com a concretização dessa façanha (ou inspirada por ela), ocorresse, ao mesmo tempo, saudável e indispensável transformação da sociedade brasileira. Que se realizassem as tão propaladas reformas de base (a maioria das quais permanece ainda por se fazer), que estreitassem o fosso profundo (diria, abismo) que separa ricos e pobres no País.
Mas... esse não é propriamente meu assunto nesta série de textos destinada a celebrar o cinqüentenário de Brasília. Meu foco central é a inserção da cidade na literatura brasileira, mesmo com tão pouco tempo de existência. Alguns leitores estranham o fato de eu centralizar, até aqui, boa parte dos meus comentários a propósito na obra do escritor, professor e diplomata potiguar João Almino.
Calma, gente. Abordarei, na medida do possível, outros tantos autores e outros tantos livros que têm em Brasília o cenário de seus enredos ou inspiração de poemas e crônicas. Claro que não conseguirei escrever, nem que sejam reles cinco linhas de cada, sobre “todos”. Afinal, mesmo que não pareça, foram tantos os que se encantaram (ou que se desencantaram) com essa cidade mágica, que se torna tarefa impossível, mais árdua do que os sete trabalhos de Hércules, não omitir ninguém.
Antes de passar para outros escritores, compete-me analisar, porém, mais dois romances de João Almino. No final da série, vocês entenderão porque minha insistência na obra desse exímio ficcionista, que merece muito mais atenção e reverência por parte dos amantes da boa literatura do que a que de fato recebe.
“As cinco estações do amor” é o terceiro livro consecutivo desse autor que tem Brasília por cenário. A trama dos dois (e de um quarto, que abordarei na seqüência) anteriores e desse drama existencial é tão bem urdida, que as histórias narradas só poderiam se passar nessa cidade. Qualquer outro que fosse o cenário, não combinaria com o enredo.
Uma das características que se notam, logo de cara, em “As cinco estações do amor”, é a mudança do narrador da história. Se em “Idéias para onde passar o fim do mundo” quem transmite a trama para o leitor é um fotógrafo cego, se em “Samba-enredo” esse papel cabe a um computador portátil (laptop) encontrado no lixo, neste terceiro romance a explanação é feita por uma mulher.
Quem ler desatentamente o livro e não notar, na capa, que o autor é homem, pensará que se trata de obra de uma escritora. Heloísa Buarque de Hollanda observou, a propósito desse detalhe: “O que não se esperava é que o narrador fosse uma mulher e mais, uma mulher com a dicção mais ortodoxamente feminina que se pudesse prever. Essa mulher era, sem dúvida, da minha geração ou da que veio imediatamente depois”.
A Brasília, palco dessa história, não é a do período de construção, nem do imediatamente posterior à inauguração e muito menos a atual, do início da segunda década do século XXI. É a que vivia (como, ademais, o resto do País), o drama dos chamados “anos de chumbo”, do auge da ditadura militar, da qual nos livramos somente depois de praticamente um quarto de século e que “castrou”, portanto, uma geração inteira de intelectuais, por causa da maldita censura.
Perpassa, pois, compreensivelmente, por todo o livro, um quê de desesperança e desilusão face às atitudes dos políticos em relação ao destino nacional, embora esses sentimentos estejam somente implícitos.
Nesse romance, conforme ressalta o crítico José Castello, em “A literatura de João Almino contra a ilusão” – texto publicado no caderno “Cultura” do jornal “O Estado de São Paulo”, em 16 de setembro de 2001 – o escritor enfoca Brasília por um prisma mais realista: “a capital construída para o futuro aparece como uma crença a desmoronar”.
Ana Kaufmann, narradora desiludida e triste, que tenta reconstruir, minimamente, suas ilusões políticas, amorosas e existenciais, dá a tônica dessa narrativa realista. José Castello praticamente resume o espírito que permeia todo o romance da seguinte maneira: “Brasília, um cenário criado em louvor do futuro, gera um presente que Ana sente como depressivo e até devastador. Nesse sentido, a literatura de João Almino é contemporânea: sem ilusões, impiedoso com as utopias e os sonhos fáceis, ele escreve não como retratista que deseja reproduzir o real para celebrá-lo, mas como o carrasco que pesando o real, nos empurra de cara no chão”.
Em outro trecho, o crítico observa: “Na verdade, a Brasília de Almino não é só uma cidade moderna, mas uma metáfora do mundo moderno. Cidade de migrantes em direção à qual todo o Brasil converge e de onde agora foge; cidade síntese num mundo em que a síntese foi substituída pelo fragmento. Cidade onde os materiais humanos mais elementares, como o sexo, o amor, a amizade, o trabalho, tomam formas, às vezes inaceitáveis, outras inacreditáveis”.
Muitos podem estar perguntando aos seus botões: “Por que o título ‘as cinco estações...’, quando todos sabemos que existem, apenas, as quatro: primavera, verão, outono e inverno?”. Qual seria essa “quinta”? José Castello, todavia, nos esclarece: “Ela não é uma soma das quatro estações existentes, tampouco a sua negação. É, talvez, o lugar da literatura (aquilo que Rosa chamou de ‘a terceira margem do rio’), lugar não da ilusão, mas, como sugerem escritores vigorosos como Almino, da desilusão”.

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