Brasília fotogênica
Pedro J. Bondaczuk
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A fotografia tem coisas que me intrigam. Antes de tudo, confesso que considero essa possibilidade de “captura” de uma determinada ação, numa fração infinitésima de tempo, de reles microssegundos, e o seu “congelamento”, ou seja, sua reprodução em imagem, um milagre, a despeito de nós, homens do século XXI, não darmos o devido valor à tecnologia de que dispomos. Qualquer pessoa, hoje em dia, tem acesso a algum tipo de máquina fotográfica. Podemos fotografar o que quisermos, e com excelente qualidade, até (ou principalmente) com o nosso celular (também maravilha das maravilhas, diga-se de passagem, que igualmente não valorizamos devidamente).
Houvesse alguma máquina do tempo, que nos possibilitasse um passeio ao início do século XIX, e disséssemos a alguém que vivesse nesse período que isso seria um dia possível, certamente ganharíamos o prêmio de idiotas do ano e provavelmente seríamos alçados a “bobos da corte” de algum dos tantos reis que então governavam diversos países. Hoje, teríamos esse mesmo efeito, mas se negássemos essa possibilidade.
Uma das coisas que mais me intrigam em fotografia é o fato de algumas pessoas (ou cidades), mesmo sendo belíssimas, não produzirem imagens fotográficas que condigam com essa condição estética, enquanto que outras, tidas e havidas como feias, saírem bem nas fotos. Chama-se a isso de fotogenia. Há quem (ou o que) seja fotogênico e quem (ou o que) não ostente essa característica. Por que? Mistério!
Entre as várias cidades que se prestam a excelentes fotografias, destaco Brasília. Por pior que seja o fotógrafo, por mais rústica que seja a máquina que utilize e por mais precário que seja o filme, a imagem da cidade sempre sai bem. Não vi, até hoje, uma só foto ruim da nossa moderna (e até um tanto mística) capital.
E por que trato, hoje, de fotografia? Para abordar mais um romance do escritor, professor e diplomata potiguar João Almino, “O livro das emoções” (Editora Record). Ainda não entenderam o que uma coisa tem a ver com outra? Na seqüência entenderão. Um pouco de suspense é bom para aguçar curiosidade.
O romance em questão é o quarto desse surpreendente autor tendo Brasília por cenário. Viram? As coisas começam a se encaixar. Onde entra a fotografia e, mais especificamente, a fotogenia nisso tudo? Já, já vocês verão.
Dos quatro livros de Almino que trago à baila, este é, na minha opinião, o mais intrigante. Concordo com a feliz comparação feita por Alcir Pécora, no prefácio dessa obra. Ele diz que o estilo do autor é como o do cineasta Robert Altman. O romance é narrado em primeira pessoa pelo seu personagem central, Cadu, fotógrafo cego que pretende elaborar um diário fotográfico. É a esse álbum que ele tenciona denominar, depois de pronto, de “O livro das emoções”, escolhido por Almino para ser, no final das contas, o título do romance.
É aí que cabe a comparação com Altman. Ou seja, como nos filmes desse celebrado cineasta (falecido em 2006), a narrativa se desenvolve entre os personagens em histórias paralelas que, todavia, se cruzam e compõem o que? Compõem uma espécie de álbum fotográfico. Ressalte-se que nem o personagem central, no caso Cadu, e nem os leitores vêem fotografia alguma. O primeiro, por motivos óbvios: é cego. Apenas, portanto, “imagina” as pessoas, coisas e acontecimentos ao seu redor, já que o tato, mesmo que aguçado neste caso, tende a enganar. Os segundos, os que estão lendo o romance, não as enxergam por uma razão bem objetiva. Porque não são mostradas fotos nenhumas.
Aliás, fico imaginando se é possível alguém privado do sentido de visão ser fotógrafo. Como?!!! É outro ponto intrigante dessa história muitíssimo bem construída. E quem “desfila” na memória de Cadu? Desfilam, entre outros, o amigo Maurício; as mulheres com quem ele vive (Joana e Aída) e Eduardo Kaufman, deputado, digamos, de procedimento nada ético, envolvido em uma série de tramóias e negociatas.
Todas são pessoas comuns, mesmo (ou principalmente) o político corrupto, que podemos encontrar, a qualquer momento, nas avenidas e superquadras de Brasília, por retratarem, sobretudo, nossa classe média neste início de segunda década do século XXI.
E por que essa obsessão de Almino por fotografia, ao ponto de insistir neste personagem insólito, que é um fotógrafo cego? Primeiro, porque entre suas várias habilidades (professor, diplomata e escritor) está a da fotografia, uma das suas confessadas paixões. A segunda razão, e a mais importante, ele mesmo explica qual é: “Toda fotografia é prova de um encontro, às vezes marcado, às vezes fortuito”.
O escritor (e médico) Moacyr Scliar, em artigo que escreveu sobre “O livro das emoções” (publicado no caderno “Ilustrada” do Jornal “Folha de S. Paulo”, em 2 de agosto de 2008) observou: “Diplomatas em geral têm uma ampla visão do mundo, ao que acrescentam, no caso brasileiro, a vivência de Brasília, que, por sua curta história, ainda não se transformou num cenário preferencial para a ficção brasileira, como acontece com Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Mas não resta dúvida que a capital federal representa um desafio para os escritores: ela é a expressão política e geográfica de um processo modernista que se traduz em arrojada e controversa arquitetura, é a síntese das etnias brasileiras, é uma cultura sem raízes no passado e, portanto, original (como identificar o sotaque brasiliense?) e é o lugar no país em que mais se encontram estrangeiros”.
Scliar conclui seu raciocínio: “Para Almino, Brasília é a síntese do País, uma mistura de moderno e arcaico, um cadinho de nossas múltiplas identidades. Uma fonte inesgotável de inspiração, portanto, e não é de admirar que a trilogia tenha evoluído para quarteto...”. E eu aduzo que não ficarei nada surpreso se, em breve, essa série se transformar em quinteto, sexteto, hepteto e assim por diante.
Brasília é e sempre será uma Esfinge, um enigma, um mistério a ser desvendado e, portanto, um desafio, não somente para João Almino, que já o encarou (e muito bem) por quatro vezes, mas também para nós, escritores do século XXI. Mas, cá para nós: como a danada dessa cidade é fotogênica!!! Até um fotógrafo cego sabe disso!!!
Pedro J. Bondaczuk
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A fotografia tem coisas que me intrigam. Antes de tudo, confesso que considero essa possibilidade de “captura” de uma determinada ação, numa fração infinitésima de tempo, de reles microssegundos, e o seu “congelamento”, ou seja, sua reprodução em imagem, um milagre, a despeito de nós, homens do século XXI, não darmos o devido valor à tecnologia de que dispomos. Qualquer pessoa, hoje em dia, tem acesso a algum tipo de máquina fotográfica. Podemos fotografar o que quisermos, e com excelente qualidade, até (ou principalmente) com o nosso celular (também maravilha das maravilhas, diga-se de passagem, que igualmente não valorizamos devidamente).
Houvesse alguma máquina do tempo, que nos possibilitasse um passeio ao início do século XIX, e disséssemos a alguém que vivesse nesse período que isso seria um dia possível, certamente ganharíamos o prêmio de idiotas do ano e provavelmente seríamos alçados a “bobos da corte” de algum dos tantos reis que então governavam diversos países. Hoje, teríamos esse mesmo efeito, mas se negássemos essa possibilidade.
Uma das coisas que mais me intrigam em fotografia é o fato de algumas pessoas (ou cidades), mesmo sendo belíssimas, não produzirem imagens fotográficas que condigam com essa condição estética, enquanto que outras, tidas e havidas como feias, saírem bem nas fotos. Chama-se a isso de fotogenia. Há quem (ou o que) seja fotogênico e quem (ou o que) não ostente essa característica. Por que? Mistério!
Entre as várias cidades que se prestam a excelentes fotografias, destaco Brasília. Por pior que seja o fotógrafo, por mais rústica que seja a máquina que utilize e por mais precário que seja o filme, a imagem da cidade sempre sai bem. Não vi, até hoje, uma só foto ruim da nossa moderna (e até um tanto mística) capital.
E por que trato, hoje, de fotografia? Para abordar mais um romance do escritor, professor e diplomata potiguar João Almino, “O livro das emoções” (Editora Record). Ainda não entenderam o que uma coisa tem a ver com outra? Na seqüência entenderão. Um pouco de suspense é bom para aguçar curiosidade.
O romance em questão é o quarto desse surpreendente autor tendo Brasília por cenário. Viram? As coisas começam a se encaixar. Onde entra a fotografia e, mais especificamente, a fotogenia nisso tudo? Já, já vocês verão.
Dos quatro livros de Almino que trago à baila, este é, na minha opinião, o mais intrigante. Concordo com a feliz comparação feita por Alcir Pécora, no prefácio dessa obra. Ele diz que o estilo do autor é como o do cineasta Robert Altman. O romance é narrado em primeira pessoa pelo seu personagem central, Cadu, fotógrafo cego que pretende elaborar um diário fotográfico. É a esse álbum que ele tenciona denominar, depois de pronto, de “O livro das emoções”, escolhido por Almino para ser, no final das contas, o título do romance.
É aí que cabe a comparação com Altman. Ou seja, como nos filmes desse celebrado cineasta (falecido em 2006), a narrativa se desenvolve entre os personagens em histórias paralelas que, todavia, se cruzam e compõem o que? Compõem uma espécie de álbum fotográfico. Ressalte-se que nem o personagem central, no caso Cadu, e nem os leitores vêem fotografia alguma. O primeiro, por motivos óbvios: é cego. Apenas, portanto, “imagina” as pessoas, coisas e acontecimentos ao seu redor, já que o tato, mesmo que aguçado neste caso, tende a enganar. Os segundos, os que estão lendo o romance, não as enxergam por uma razão bem objetiva. Porque não são mostradas fotos nenhumas.
Aliás, fico imaginando se é possível alguém privado do sentido de visão ser fotógrafo. Como?!!! É outro ponto intrigante dessa história muitíssimo bem construída. E quem “desfila” na memória de Cadu? Desfilam, entre outros, o amigo Maurício; as mulheres com quem ele vive (Joana e Aída) e Eduardo Kaufman, deputado, digamos, de procedimento nada ético, envolvido em uma série de tramóias e negociatas.
Todas são pessoas comuns, mesmo (ou principalmente) o político corrupto, que podemos encontrar, a qualquer momento, nas avenidas e superquadras de Brasília, por retratarem, sobretudo, nossa classe média neste início de segunda década do século XXI.
E por que essa obsessão de Almino por fotografia, ao ponto de insistir neste personagem insólito, que é um fotógrafo cego? Primeiro, porque entre suas várias habilidades (professor, diplomata e escritor) está a da fotografia, uma das suas confessadas paixões. A segunda razão, e a mais importante, ele mesmo explica qual é: “Toda fotografia é prova de um encontro, às vezes marcado, às vezes fortuito”.
O escritor (e médico) Moacyr Scliar, em artigo que escreveu sobre “O livro das emoções” (publicado no caderno “Ilustrada” do Jornal “Folha de S. Paulo”, em 2 de agosto de 2008) observou: “Diplomatas em geral têm uma ampla visão do mundo, ao que acrescentam, no caso brasileiro, a vivência de Brasília, que, por sua curta história, ainda não se transformou num cenário preferencial para a ficção brasileira, como acontece com Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Mas não resta dúvida que a capital federal representa um desafio para os escritores: ela é a expressão política e geográfica de um processo modernista que se traduz em arrojada e controversa arquitetura, é a síntese das etnias brasileiras, é uma cultura sem raízes no passado e, portanto, original (como identificar o sotaque brasiliense?) e é o lugar no país em que mais se encontram estrangeiros”.
Scliar conclui seu raciocínio: “Para Almino, Brasília é a síntese do País, uma mistura de moderno e arcaico, um cadinho de nossas múltiplas identidades. Uma fonte inesgotável de inspiração, portanto, e não é de admirar que a trilogia tenha evoluído para quarteto...”. E eu aduzo que não ficarei nada surpreso se, em breve, essa série se transformar em quinteto, sexteto, hepteto e assim por diante.
Brasília é e sempre será uma Esfinge, um enigma, um mistério a ser desvendado e, portanto, um desafio, não somente para João Almino, que já o encarou (e muito bem) por quatro vezes, mas também para nós, escritores do século XXI. Mas, cá para nós: como a danada dessa cidade é fotogênica!!! Até um fotógrafo cego sabe disso!!!
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