A escola da rua
Pedro J. Bondaczuk
A “escola da rua”, para pessoas que, mediante a intuição, saibam distinguir o bem do mal, o positivo do negativo e o desejável do detestável, é, a meu ver, a que melhor prepara quem nasce em lares desestruturados, desses que sequer merecem essa designação por se constituírem em “sucursais do inferno”, para a vida. Pior para elas são instituições do tipo Febem ou o que o valha. Ressalte-se que nem todos os que são relegados a esse tipo de abandono se marginalizam, descambam para a criminalidade e se tornam irremissíveis perdedores, como amiúde se pensa.
É claro que não recomendo (nem seria maluco de recomendar) esse tipo de experiência para quem quer que seja. Raros são os que sequer sobrevivem a tamanho abandono. E mais: raros ainda são os que dão a volta por cima e se tornam “alguém”, ou seja, que resgatam (ou na verdade constroem) a identidade, saem do subterrâneo social e se tornam minimamente úteis à sociedade.
Ressalto, apenas, que para os que, por causa das circunstâncias, se vêem relegados a esse terrível tipo de vida, sempre haverá uma saída, se a souberem procurar. E, se forem corajosos, determinados, observadores e, sobretudo inventivos, descobrirão a forma de transformar essa calamitosa situação em precioso aprendizado. É verdade que poucos conseguem sair de tão baixo sequer para uma condição um pouquinho melhor. A maioria sucumbe. E muito mais raro é alguém que passa por esse inferno obter o que costumamos chamar de “sucesso”. Mas quem consegue...
Há figuras públicas que, mesmo que desconheçamos suas vidas particulares, nos fascinam, comovem e conquistam. Algumas, tão logo tomemos conhecimento de como de fato são, nos decepcionam, é verdade. Outras, porém, assenhoreiam-se definitivamente da nossa estima e tornam-se tão familiares e queridas para nós como se fossem nossos parentes (pais, irmãos, primos) ou como se vivessem conosco debaixo do mesmo teto.
Isso ocorreu comigo em relação ao ator Charles Chaplin. Quando assisti (com seis anos de idade) seus primeiros filmes, interpretando Carlitos, o “adorável vagabundo”, simpatizei de cara com o personagem. Era o “malandro” no bom sentido, ou seja, o que, improvisando soluções, saía das dificuldades sem fazer grande esforço e sem prejudicar ninguém. Eu ria (na verdade gargalhava) espontaneamente das suas trapalhadas, admirava sua sagacidade em driblar as “autoridades” que tentavam barrar seu caminho e da esperteza com que agia para sobreviver em meio à absoluta carência.
Comecei, portanto, amando o “personagem”, não seu intérprete e criador. Não conhecia coisíssima alguma a seu respeito. Não sabia nada, nada mesmo, sequer quando e onde nasceu. Achava, por exemplo, que fosse norte-americano (não era, era inglês).
Com o tempo, já jornalista, comecei a reunir informações sobre Charles Chaplin. E quanto mais sabia a seu respeito, mais cresciam minha admiração, respeito e estima por ele. Há coisas, sobre personalidades públicas, que associamos a fatos ligados à nossa própria vida. E, quando pensamos nelas, de imediato nos vem à memória, como que num processo mnemônico, exatamente aquilo que nos diz respeito.
Soube, por exemplo, que Chaplin nasceu em 1889. Ora, esse foi o ano do nascimento do meu avô Hilarion, a quem amei sem reservas por sua bondade, força e coragem (e que amarei para sempre, enquanto viver). Era o pai do meu pai. Viveu exatos 105 anos e 11 meses, ativo, lúcido, sábio e bondoso. Morreu em 20 de setembro de 1995, rigorosamente um mês antes de completar 106 anos, que faria em 20 de outubro.
Mesmo que não conhecesse mais nada a respeito de Charles Chaplin, portanto, o estimaria apenas por este pequeno detalhe. Ou seja, por me trazer à memória essa identidade com o meu avô: o mesmo ano do nascimento.
Mas resolvi me aprofundar em sua biografia. E, à medida que o ia conhecendo mais e mais, minha admiração e estima por essa figura carismática tendia a crescer celeremente, sem limites, virtualmente ao infinito. Sua trajetória de vida, para o meu espanto, guardava inúmeras semelhanças com o Carlitos, querido e inesquecível personagem da minha meninice.
Charles Spencer Chaplin, por exemplo, pelo histórico da sua infância, tinha tudo para se transformar num marginal, desses inadaptados para o convívio social, frutos de lares mal-formados que, por falta de orientação segura e de bons exemplos a seguir, descambam para a criminalidade, exsudando ódio e rancor por todos os poros, contra tudo e contra todos, notadamente contra uma sociedade que os abandona e discrimina, que não conseguem entender e que, sobretudo, os rejeita como “erros da natureza”.
Se sucesso fosse questão de berço, portanto, Chaplin já nasceria irremediavelmente derrotado. O pai, por exemplo, era alcoólatra inveterado, sem nenhuma condição de cuidar sequer de si mesmo, cujo único objetivo era conseguir alguns trocados a cada dia para satisfazer o vício. Morreu precocemente, como seria de se esperar, em conseqüência do alcoolismo. A mãe não era melhor. Era cantora de cabaré, sem nenhum talento e não raro teve que se prostituir para sobreviver.
Lar, portanto.... Chaplin nunca teve. E quem se encarregava do sustento e da educação do garoto? Ninguém! Ou melhor, a rua, onde aprendeu a se virar. Alguns de seus biógrafos garantem, mesmo, que teve que praticar pequenos furtos, para não morrer de fome. Seria previsível que assim fosse. Não persistiu, contudo, nessa prática.
Aprendeu um pouco aqui, um pouco ali, de tudo o que era necessário não só para sobreviver, mas para sair daquele pântano social. E deu no que deu. Tornou-se não apenas celebridade do mundo das artes, mas um mito do século XX. Certamente voltarei a escrever a respeito.
Anatole France, o laureado escritor francês, escreveu, certa feita (se não me engano, no romance “O manequim de vime”): “De todas as escolas que freqüentei, a da rua foi a que me pareceu melhor”. Nela, pelo menos, se a pessoa tiver um tiquinho que seja de cabeça, se não se corromper e nem desanimar, aprenderá (posto que na marra) as regras básicas da sobrevivência. Charles Chaplin que o diga!
A “escola da rua”, para pessoas que, mediante a intuição, saibam distinguir o bem do mal, o positivo do negativo e o desejável do detestável, é, a meu ver, a que melhor prepara quem nasce em lares desestruturados, desses que sequer merecem essa designação por se constituírem em “sucursais do inferno”, para a vida. Pior para elas são instituições do tipo Febem ou o que o valha. Ressalte-se que nem todos os que são relegados a esse tipo de abandono se marginalizam, descambam para a criminalidade e se tornam irremissíveis perdedores, como amiúde se pensa.
É claro que não recomendo (nem seria maluco de recomendar) esse tipo de experiência para quem quer que seja. Raros são os que sequer sobrevivem a tamanho abandono. E mais: raros ainda são os que dão a volta por cima e se tornam “alguém”, ou seja, que resgatam (ou na verdade constroem) a identidade, saem do subterrâneo social e se tornam minimamente úteis à sociedade.
Ressalto, apenas, que para os que, por causa das circunstâncias, se vêem relegados a esse terrível tipo de vida, sempre haverá uma saída, se a souberem procurar. E, se forem corajosos, determinados, observadores e, sobretudo inventivos, descobrirão a forma de transformar essa calamitosa situação em precioso aprendizado. É verdade que poucos conseguem sair de tão baixo sequer para uma condição um pouquinho melhor. A maioria sucumbe. E muito mais raro é alguém que passa por esse inferno obter o que costumamos chamar de “sucesso”. Mas quem consegue...
Há figuras públicas que, mesmo que desconheçamos suas vidas particulares, nos fascinam, comovem e conquistam. Algumas, tão logo tomemos conhecimento de como de fato são, nos decepcionam, é verdade. Outras, porém, assenhoreiam-se definitivamente da nossa estima e tornam-se tão familiares e queridas para nós como se fossem nossos parentes (pais, irmãos, primos) ou como se vivessem conosco debaixo do mesmo teto.
Isso ocorreu comigo em relação ao ator Charles Chaplin. Quando assisti (com seis anos de idade) seus primeiros filmes, interpretando Carlitos, o “adorável vagabundo”, simpatizei de cara com o personagem. Era o “malandro” no bom sentido, ou seja, o que, improvisando soluções, saía das dificuldades sem fazer grande esforço e sem prejudicar ninguém. Eu ria (na verdade gargalhava) espontaneamente das suas trapalhadas, admirava sua sagacidade em driblar as “autoridades” que tentavam barrar seu caminho e da esperteza com que agia para sobreviver em meio à absoluta carência.
Comecei, portanto, amando o “personagem”, não seu intérprete e criador. Não conhecia coisíssima alguma a seu respeito. Não sabia nada, nada mesmo, sequer quando e onde nasceu. Achava, por exemplo, que fosse norte-americano (não era, era inglês).
Com o tempo, já jornalista, comecei a reunir informações sobre Charles Chaplin. E quanto mais sabia a seu respeito, mais cresciam minha admiração, respeito e estima por ele. Há coisas, sobre personalidades públicas, que associamos a fatos ligados à nossa própria vida. E, quando pensamos nelas, de imediato nos vem à memória, como que num processo mnemônico, exatamente aquilo que nos diz respeito.
Soube, por exemplo, que Chaplin nasceu em 1889. Ora, esse foi o ano do nascimento do meu avô Hilarion, a quem amei sem reservas por sua bondade, força e coragem (e que amarei para sempre, enquanto viver). Era o pai do meu pai. Viveu exatos 105 anos e 11 meses, ativo, lúcido, sábio e bondoso. Morreu em 20 de setembro de 1995, rigorosamente um mês antes de completar 106 anos, que faria em 20 de outubro.
Mesmo que não conhecesse mais nada a respeito de Charles Chaplin, portanto, o estimaria apenas por este pequeno detalhe. Ou seja, por me trazer à memória essa identidade com o meu avô: o mesmo ano do nascimento.
Mas resolvi me aprofundar em sua biografia. E, à medida que o ia conhecendo mais e mais, minha admiração e estima por essa figura carismática tendia a crescer celeremente, sem limites, virtualmente ao infinito. Sua trajetória de vida, para o meu espanto, guardava inúmeras semelhanças com o Carlitos, querido e inesquecível personagem da minha meninice.
Charles Spencer Chaplin, por exemplo, pelo histórico da sua infância, tinha tudo para se transformar num marginal, desses inadaptados para o convívio social, frutos de lares mal-formados que, por falta de orientação segura e de bons exemplos a seguir, descambam para a criminalidade, exsudando ódio e rancor por todos os poros, contra tudo e contra todos, notadamente contra uma sociedade que os abandona e discrimina, que não conseguem entender e que, sobretudo, os rejeita como “erros da natureza”.
Se sucesso fosse questão de berço, portanto, Chaplin já nasceria irremediavelmente derrotado. O pai, por exemplo, era alcoólatra inveterado, sem nenhuma condição de cuidar sequer de si mesmo, cujo único objetivo era conseguir alguns trocados a cada dia para satisfazer o vício. Morreu precocemente, como seria de se esperar, em conseqüência do alcoolismo. A mãe não era melhor. Era cantora de cabaré, sem nenhum talento e não raro teve que se prostituir para sobreviver.
Lar, portanto.... Chaplin nunca teve. E quem se encarregava do sustento e da educação do garoto? Ninguém! Ou melhor, a rua, onde aprendeu a se virar. Alguns de seus biógrafos garantem, mesmo, que teve que praticar pequenos furtos, para não morrer de fome. Seria previsível que assim fosse. Não persistiu, contudo, nessa prática.
Aprendeu um pouco aqui, um pouco ali, de tudo o que era necessário não só para sobreviver, mas para sair daquele pântano social. E deu no que deu. Tornou-se não apenas celebridade do mundo das artes, mas um mito do século XX. Certamente voltarei a escrever a respeito.
Anatole France, o laureado escritor francês, escreveu, certa feita (se não me engano, no romance “O manequim de vime”): “De todas as escolas que freqüentei, a da rua foi a que me pareceu melhor”. Nela, pelo menos, se a pessoa tiver um tiquinho que seja de cabeça, se não se corromper e nem desanimar, aprenderá (posto que na marra) as regras básicas da sobrevivência. Charles Chaplin que o diga!
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