Wednesday, March 18, 2009

Estigma da brutalidade


Pedro J. Bondaczuk

O homem contemporâneo é tão, ou na verdade muito mais brutal do que nossos mais remotos ancestrais, inclusive os primitivos habitantes das cavernas. Teoricamente, a educação e o crescente acesso às informações, ditados pela fantástica evolução da tecnologia, deveriam reduzir, se não eliminar, todo e qualquer tipo de brutalidade. Não é, porém, infelizmente, o que acontece. Muito pelo contrário.
A História registra guerras e mais guerras, ferocíssimas e sanguinárias, desde a invenção da escrita. Mas nenhuma das atrocidades de um Átila, de um Alarico, de um Genserico ou de tantos e tantos outros ferozes matadores sequer se compara, por exemplo, nem de longe, ao Holocausto, da Segunda Guerra Mundial, ou aos massacres ocorridos ainda recentemente na Bósnia, em Kosovo, na Chechênia e, notadamente no Iraque e no Afeganistão.
Os combates, na Antiguidade, eram uma espécie de jogo. Os combatentes tinham chances não só de atacar, mas de se defender (mesmo que remotas). Havia tácito código de honra, que era seguido à risca. Mesmo as campanhas de Napoleão Bonaparte, no início do século XIX, tinham essas características de prevalência de táticas e competência dos soldados e não de equipamentos bélicos para superar a estratégia dos inimigos. Não quero, com isso, justificar a existência de guerras, longe disso, qualquer que seja o pretexto dos antagonistas para recorrer às armas. O que pretendo demonstrar é que hoje elas são muito mais brutais e covardes.
As potências têm recursos de eliminação de contingentes de pessoas e de destruição de quarteirões, bairros e até de cidades, tão sofisticados, que prescindem do confronto cara a cara dos soldados. Quem nunca ouviu falar, ao longo da Guerra do Golfo de 1991, de “ataques cirúrgicos” das forças aliadas (na verdade, dos EUA disfarçadas sob esse eufemismo), contra as tropas de Saddam Hussein?
Os meios de comunicação a todo o momento usavam essa expressão, dando a impressão ao telespectador desavisado (a maioria) que a população civil iraquiana não corria o mínimo risco de ser atingida e que apenas suas forças militares estavam expostas aos bombardeios, feitos a quilômetros de distância, com mísseis de extrema precisão, disparados de navios.
Quem tem, porém, mais do que dois neurônios em funcionamento, sabe que o conflito não transcorreu de acordo com as informações (informações?) parcialíssimas da imprensa do chamado mundo ocidental. Escolas, creches, hospitais e dezenas, centenas, quiçá milhares de residências foram pelos ares, supostamente confundidas com quartéis, o que resultou em milhares de mulheres, crianças e idosos mortos sem a mais remota chance de defesa. Nem Átila, o huno, agia assim, com tanta frieza, cinismo e covardia.
A brutalidade a que me refiro, porém, não é somente a das guerras, embora seja, igualmente, conseqüência delas. Querem coisa mais brutal, por exempolo, do que os campos de concentração atuais (como o de Guantanamo, território norte-americano encravado em Cuba), tão pavorosos ou mais do que os dos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial? E isso, jornal e revista nenhum noticiam. Muitíssimo menos a televisão (o que implica na suprema brutalidade da omissão, quando não da distorção e, pior, da parcialidade dos veículos de comunicação).
Outra coisa brutal são os campos de refugiados espalhados pelo mundo afora. Querem nos impingir que sua existência é, na verdade, uma “ação humanitária” das Nações Unidas, pois ali as pessoas encontrariam abrigo, proteção, alimentos e tratamento médico. Pelo contrário, são a prova mais concreta e palpável da suprema brutalidade do homem contemporâneo, que reduz semelhantes a cifras estatísticas, desprezando seus sonhos, anseios, ideais e, em suma, sua humanidade.
Atitude humanitária seria a reintegração desses contingentes de zumbis às respectivas sociedades, com igualdade de direitos e deveres. Raros são reintegrados. Essas pessoas perderam tudo, absolutamente tudo, famílias, casas, carros, documentos etc. e só lhes restou a roupa do corpo (quando restou) e a vida, porém sem esperanças e perspectivas, em decorrência de guerras e conflitos regionais, internos ou envolvendo vários países, com a participação ou a conivência das potências que posam de “civilizadas” e, não raro, com o aval da ONU.
E não pense o leitor que são poucos os que são submetidos a esse horror. São muitos. Muitíssimos! De acordo com a organização Médicos sem Fronteira, estima-se que haja, na atualidade, 12 milhões de seres humanos vegetando em campos de refugiados mundo afora, sem direito à cidadania, à liberdade, a ambições pessoais e a sonhos. Esse tanto de gente equivale, grosso modo (apenas para comparação) com a população total da zona urbana da cidade de São Paulo, a terceira mais populosa do mundo.
Falar de brutalidade pessoal, da individual, é absolutamente desnecessário. Vemos, diariamente, onde quer que formos, atos brutais e insanos sendo cometidos até em plena luz do dia, não raro sob o olhar complacente, omisso e covarde dos que arrotam uma cidadania que de fato não têm. Muitos vivem essa realidade em suas próprias casas, ou como vítimas, ou, não raro, como verdugos, muitas vezes até inconscientes, por entenderem que suas atitudes são “normais” e socialmente aceitáveis.
Por isso, não tenho como deixar de dar razão ao escritor peruano, Mário Vargas Llosa (que foi candidato à Presidência da República do Peru e derrotado pelo ora exilado Alberto Fujimori), que constatou: “A brutalidade constitui uma das mais constantes heranças humanas, que o desenvolvimento absolutamente não elimina”.
Eu aduziria, desolado: “infelizmente”. Na verdade, a tão apregoada “evolução dos povos” (Onde? Como? No que?), ditada pela falácia da “globalização”, não raro até incrementa a brutalidade ao limite do paroxismo e é infinitamente mais bárbara e cruel do que a do nosso remotíssimo ancestral das cavernas.

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