Tuesday, December 05, 2006
Visita inesperada
(Continuação)
Quando cheguei ao alpendre da nossa casa, após ter desatrelado os cães do trenó e tê-los recolhido ao canil e alimentado, notei que havia luzes na sala de estar. Achei estranho, pois quando havíamos saído, eu, Olga e Tânya, ainda era dia claro e, por conseqüência, nenhum de nós havia acendido os candelabros, até por uma questão de prudência, de segurança, para evitar incêndio acidental.
--- "Deve ter sido algum servo que esqueceu alguma coisa, voltou para pegar e, ao sair, deixou de apagar as luzes" – pensei. Anotei mentalmente aquela falta grave, para cobrar da criadagem no dia seguinte. A ela, aduzi mais uma: o fato da lareira também ter sido deixada acesa, já que podia ver, perfeitamente, uma fumaça azulada saindo pela chaminé.
Entrei no vestíbulo, tirei o gorro de astracã, o grosso casaco de pele de urso e pendurei ambos atrás da porta. Descalcei as botas, um tanto enlameadas, que tive o cuidado de deixar escondidas num canto, para limpar logo cedo, no dia seguinte, antes que Olga voltasse e pudesse ralhar comigo, calçando grossos chinelos de lã no seu lugar, que eram um alívio para os meus pés doloridos. Feito isso, dirigi-me para a cozinha, para preparar um revigorante chá.
Ao chegar, no entanto, à porta desse espaçoso e agradável cômodo, quedei estupefato. Esfreguei duas, três, dez vezes os olhos para espantar um possível delírio ou eventual ilusão de óptica. Não! Eu não estava delirando!
Sentado junto à longa e sólida mesa de madeira polida, onde os servos faziam as suas refeições, estava papai, taciturno como antes de partir para a Criméia, mas aparentemente com boa saúde. Budka, o nosso gato de estimação, estava enroscado em seu colo, com os olhos como que vidrados de êxtase pelo carinho que recebia daquelas mãos grossas e fortes.
Junto ao grande fogão a lenha, que desprendia um intenso e gostoso calor, Kyrillo retirava um samovar de prata de uma das bocas, relíquia de várias gerações da família, e conduzia-o para a mesa. Yulka, o cão predileto de todos nós, que só faltava falar de tão esperto que era, dormia preguiçosamente aos pés de papai.
Por alguns instantes, que me pareceram uma eternidade, a surpresa paralisou-me. Todos os movimentos faltaram-me, simultaneamente, em todas as partes do corpo. Não conseguia me mover e, principalmente a língua, tinha ficado inerte. Fiquei estático, calado, mas radiante com o inesperado presente de Natal que estava recebendo!
Meu primeiro impulso foi o de correr para a aldeia, para avisar Tânya e Olga da grande novidade. Depois, eu e Kyrillo corremos ao mesmo tempo, como que impulsionados por uma poderosa mola, um em direção ao outro, para um forte abraço fraternal, desses de estalar todos os ossos. Fiz o mesmo com papai, que no entanto não era muito dado a esse tipo de gestos de efusão de sentimentalismo. Compreensivelmente, porém, ele abria nesse momento uma rara exceção a essa sua rígida regra pessoal.
Apanhei, debaixo da longa pia de pedra, a tigela bojuda, onde Galina guardava a nata, o açucareiro no armário e a forma repleta de deliciosos "peroshquês", que minha irmã mais velha sempre fazia questão de preparar ela mesma, de cima do fogão a lenha.
O velho pediu uma garrafa de vodca, que fui buscar, apressado, em seu gabinete, que permanecera virtualmente trancado desde a sua partida e onde somente Polina entrava, de vez em quando, para fazer a limpeza.
Acomodados junto à mesa, falamos todos, ao mesmo tempo. Havia tanta coisa para ser dita, de parte a parte! Quando nos demos conta da nossa precipitação de falar, caímos em uma gostosa e jovial gargalhada, que ecoou pelas paredes e pelo teto da casa e soou como uma música deliciosa e angelical para os meus ouvidos.
Até papai, depois de dois tragos de vodca, voltou a ser o homem alegre de antigamente, de antes da morte da mamãe. A princípio, nem ele, e nem Kyrillo, quiseram falar muito da Criméia e da grande carnificina que ocorria naquela região. Mas, devagar, foram deixando de lado esses escrúpulos e narraram algumas peripécias, apenas as mais engraçadas, ocorridas, geralmente, envolvendo "mujiques" analfabetos, ingênuos e ignorantes. Dos combates em si, nenhuma palavra. E eu respeitei esse sentimento de ambos. Afinal, a ocasião não era propícia para assunto tão macabro. Eles deviam ter visto cenas horríveis para serem relembradas em qualquer época, quanto mais numa ceia de Natal improvisada, como a nossa nesse momento.
(Continua)
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