Thursday, December 07, 2006

Lembranças da várzea - 9


Pedro J. Bondaczuk


O ano de 1964 foi, para mim, inesquecível como técnico da várzea e, claro, foi, também, (e principalmente) para o Flamenguinho, por marcar a sua maior conquista desde que o clube foi fundado: o campeonato da Primeira Divisão da Liga Sancaetanense de Futebol. Da minha parte, tratou-se não somente da despedida desses amigos inesquecíveis (na verdade irmãos), mas da própria cidade de São Caetano do Sul, da qual levei tantas e boas lembranças. No dia do meu aniversário, em 20 de janeiro de 1965, mudei-me, de mala e cuia, para Campinas, onde resido até hoje. E não poderia haver forma melhor de me despedir do time do meu coração do que da forma que isso ocorreu. Ou seja, com um título surpreendente, dramático, inédito e histórico.
Desde o ano anterior, eu havia instituído períodos semanais de treino, durante a disputa do campeonato. Estes eram realizados no nosso campo, aos sábados. Em princípio, eu opunha os primeiros e segundos quadros, mas logo percebi que isso não iria dar certo. Embora os jogadores que integravam as duas equipes fossem do mesmo clube, agiam como se fossem de times diferentes, tamanha era a rivalidade entre eles. Não raro, eu perdia um ou dois titulares para o domingo, por causa de jogadas mais ríspidas, de parte a parte. Resolvi, pois, mudar o procedimento.
Para movimentar o segundo quadro e mantê-lo em constante atividade, passei a acertar amistosos com as equipes principais de grandes times da várzea de São Paulo, de Santo André, de São Bernardo e até de cidades mais distantes. E a rapaziada não me decepcionou. Manteve uma longa série de partidas invictas, o que espicaçou, por sua vez, nossos titulares a fazerem o mesmo, mas no campeonato.
Para treinar a equipe principal, eram convidados “sparrings” mais fracos, não filiados à Liga, para jogos-treinos que, não raro, ficavam “quentes”, já que os adversários, claro, sempre queriam ganhar do Flamenguinho. E, às vezes, conseguiam. Essa atividade constante, ininterrupta, semanal, todavia, era fundamental. Mantinha o time unido, com muito ritmo de jogo, entrosado e com um elenco bastante variado de jogadas ensaiadas.
Desde os primeiros jogos do campeonato de 1964 ficou claro que o nosso grande obstáculo para a conquista do tão ambicionado título (que, então, parecia apenas um remoto sonho) seria o campeoníssimo Vila Gerte. E, de fato, foi. Alternamos, com esse esquadrão, a primeira colocação do início ao fim da competição. Ora ele liderava, ora éramos nós os líderes e assim as coisas transcorriam. Quando nosso rival perdia, perdíamos também, quando empatava, ocorria o mesmo conosco e, súbito, a cidade toda se dividiu em sua torcida. Desconfio que a maioria torcia pelo Flamenguinho, considerado “mais fraco” do que o Vila Gerte. Pudera!
O time deles detinha o recorde de títulos na Primeira Divisão da Liga. Ou seja, era muito mais experiente do que o nosso. Afinal, esse era o nosso segundo campeonato na elite. Ademais, o nosso grande rival contava com um plantel fantástico, em termos de várzea. Além de quatro jogadores juvenis do Palmeiras (naquela época não havia a categoria de Juniores), que corriam uma barbaridade e tinham uma técnica refinada, contava, ainda, com três veteranos do Corinthians, para cadenciar o jogo e dar à equipe um toque de experiência. Como torcedor e amante do futebol, dava gosto de ver o Vila Gerte jogar.
A nossa maior virtude, reitero, era o conjunto, a união, o entrosamento. E, claro, o talento do Celso, fator de desequilíbrio na competição. Pelo segundo ano consecutivo, nosso Pelézinho foi eleito o melhor jogador do campeonato. Só faltou fazer chover nesse ano. Graças às suas jogadas, e aos seus passes milimétricos, o Tatinho conseguiu, de novo, ser o artilheiro da Primeira Divisão, com 42 gols.
O Flamenguinho “jogava por música”. Raríssimos eram os times, amadores ou profissionais, que tinham tanto conjunto como nós tínhamos. Talvez, sem exagero algum, somente o Santos de Pelé ou o Botafogo de Garrincha tivessem entrosamento igual. E olhem lá! Creio que se enfrentássemos, na ocasião, os grandes clubes brasileiros, não faríamos feio e seríamos capazes, até, de “beliscar” algumas vitórias.
Além do nosso time e do Vila Gerte, disputaram a Primeira Divisão de 1964: Estrela Vermelha da Vila Santa Maria, Onze Meninos, Cerâmica, Barcelona, Botafogo, Bonsucesso, Ás de Ouro, Olímpico, Santos da Vila Alpina, Mamoré da Cerâmica (que havia conseguido retornar à elite da cidade), Martelo de Ouro (que terminou o campeonato em último lugar e foi rebaixado), Santos da Vila Gerte, Marca Futebol Clube, Bangu, Monte Alegre, Comercial e Villares.
Perdemos alguns jogos em casa (como sempre, para times mal-colocados na tabela), mas ganhamos um montão deles fora, para compensar. O mesmo, curiosamente, ocorreu com nosso principal adversário. O título decidiu-se, portanto, nos dois confrontos diretos. No Primeiro Turno, arrancamos um suado 1 a 0, no nosso campo, num jogo em que fomos dominados do primeiro ao último minuto. Contamos com a sorte e com uma jogada antológica do Celso para vencer.
No jogo da volta, quando faltavam quatro rodadas para terminar o Campeonato, o Flamenguinho liderava com um ponto de vantagem sobre o Vila Gerte. Nessas circunstâncias, um empate não seria um mau negócio, desde que vencêssemos os demais compromissos. Se isso ocorresse, seríamos os campeões. E, para nossa surpresa (e nossa felicidade, claro), foi o que aconteceu.
Foi uma partida que jamais vou esquecer. Os dois times, desde o primeiro minuto, deixaram de lado as preocupações defensivas, e partiram para o ataque. Era um toma lá, dá cá ininterrupto. Aos quinze minutos do primeiro tempo, o Tatinho abriu o marcador, com um gol de cabeça. Não deu, porém, sequer para comemorar. Assim que o Vila Gerte deu a saída, seu ponta-esquerda – um escurinho velocíssimo, muito bom de bola, que era juvenil do Palmeiras – driblou a nossa zaga e fez um golaço. Foi como uma espécie de senha para que eles viessem para cima de nós com tudo e nos sufocassem até o fim do primeiro tempo.
No comecinho do segundo, mais uma vez, o talento do Celso desequilibrou. Fez um golaço, por cobertura, quase do meio do campo. O gol desestabilizou o adversário, que passou a abusar de jogadas violentas para parar o nosso ataque. Quando tudo parecia que iria acabar como estava, com a nossa vitória, o inesperado aconteceu. Aos trinta minutos, o Jorge foi de uma infelicidade a toda prova e tomou um frango antológico. Mal demos a saída, e o Vila Gerte retomou a bola e virou o marcador.
Como tanto faz perder por um, como perder por mil, mandei meu time todinho para o ataque. O tempo estava se esgotando, e nada de sair o empate. O Vicentinho acertou uma bola na trave e, no lance seguinte, o goleiro deles fez uma defesa impossível, espalmando para escanteio um chute à queima-roupa do Tatinho. Na cobrança do tiro esquinado, veio o gol salvador. E da forma mais inesperada, como tudo o mais nesse histórico jogo. O mesmo goleiro, que havia feito a defesa milagrosa anterior, saiu caçando borboleta e a bola sobrou, limpinha, para o Orestes, que a empurrou de cabeça, sem nenhuma dificuldade, para as redes. Estava decretado o empate, por 3 a 3, que nos deu o título de 1964. E em cima da hora! Tinha que ser assim para a coisa ter mais graça!

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