O trabalho

IV-O TRABALHO

(Continuação)

José era biscateiro da Ceasa há três anos. Havia dias em que descarregava de cinco caminhões para mais. Seu "recorde" fora de dez, nos dias que antecederam o Natal de 1982. Ganhava, além do preço combinado, gordas gorjetas pelo extenuante trabalho que realizava e por ser uma pessoa prestativa, que nunca dizia "não" para ninguém. Fazia pequenos favores, como comprar cigarro para os motoristas ou até ajudar as madames a colocarem suas compras nos automóveis.

Seu "salário" era sempre variável, dependendo da época, das condições da economia (que mais vivia em crise do que qualquer coisa) e da quantidade de vezes que alguém lhe pedia algum favor, invariavelmente retribuído com uns "trocados para a cervejinha", que ele não bebia.

Além de dinheiro, conseguia frutas e verduras dos proprietários de "boxes" e "pedras" no galpão central, o que ajudava muito no sustento da casa. É verdade que os gêneros ganhos não apresentavam o melhor aspecto. Não eram, portanto, comercializáveis. Apesar de próprios para o consumo, seriam jogados fora, caso não os levasse para seu barraco. Mas não eram estragados. Por isso eram bem-vindos.

Se José tivesse que comprá-los, certamente não teria dinheiro para bancar esse luxo. Teria que se contentar com a paupérrima ração de arroz e feijão diariamente, com torresmo a título de mistura. Isso lembrava até conhecido samba de Adoniran Barbosa. Vez em quando, ganhava engradados de ovos, o que vinha enriquecer sua dieta. Carne, e de frango, só havia em sua mesa um dia no máximo por mês, geralmente no domingo depois do dia 10.

Marta era doméstica. Trabalhava numa residência de luxo do bairro do Castelo, para uma família de classe média alta. Seus três mil cruzeiros mensais mal pagavam a passagem de ônibus, para que pudesse chegar diariamente ao local de trabalho. Havia sido dispensada há dois meses, com promessa de recontratação, tão logo a criança nascesse.

"Uma boa empregada é coisa rara hoje em dia", costumava dizer dona Marly, a patroa (que tinha uma lanchonete no Centro), em conversa com as amigas. E era mesmo. Muitas empregavam-se nas melhores casas da cidade apenas para sondá-las e dar dicas aos ladrões para efetuarem assaltos com maior facilidade.

Maria não tinha queixa de dona Marly e nem do marido dela, doutor Robson, "médico de cabeça", como haviam lhe explicado, de forma a que entendesse qual era a especialidade do patrão: psiquiatra. Muito pelo contrário. Era tratada com respeito e confiança. Houve até dia de almoçar na mesma mesa com a família. A filha adolescente do casal é que era chata, de nariz empinado, desconfiada de que Maria estivesse roubando suas roupas. Não estava. A patroa até que havia sido generosa, na sua dispensa, pagando dois meses a mais de salário, a título de indenização, o que a ajudou a comprar o enxoval do bebê.

(Continua)