Monday, December 18, 2006

O cenário


I- O CENÁRIO

(Continuação)

Nesse início de noite, a favela do Jardim São Marcos, na periferia de Campinas, apresentava aspecto quase festivo, caso isso fosse possível. Em muitos barracos já se ouvia pessoas falando mais alto do que o normal, ou cantando desafinadas, ou altercando umas com as outras, com a voz ligeiramente engrolada, sinal de que alguns haviam esvaziado mais garrafas de bebida do que o "normal", que já não era pouco. A comunidade havia recebido donativos – roupas usadas, mas em bom estado, brinquedos e alguns alimentos – de uma igreja evangélica da cidade. Comerciantes das redondezas mandaram bebidas para a favela.

Não se tratava, lógico, de uísques importados (ou mesmo nacionais) ou de sofisticados champanhes franceses, como ocorria em famílias de bairros que abrigavam populações melhor aquinhoadas. Alguns ganharam garrafões de vinho, de marcas baratas. Mas salvo raras exceções, tratava-se mesmo de "cachaça", de procedência duvidosa e da pior qualidade.

A maioria dos moradores encontrava-se a caminho do "limbo". Já estava no limite da desmedida fantasia humana e da miserável realidade circundante. Em surdina, meio chiada e distorcida, ouvia-se uma canção natalina americana, tocada em uma vitrola ordinária. Era o "Jingle-Bell" ou o "White Christmas", que soavam de forma insólita naquele ambiente miserável. "Coisa de gringo", dizia dona Joana. A música provinha de uma das extremidades da favela, sendo difícil determinar de qual dos barracos.

Era noite de véspera do Natal. Fora, para os lados da plantação de algodão da Fazenda Santa Genebra, em frente à favela, separada pela pista da Rodovia Dom Pedro I, uma estrela parecia brilhar com maior intensidade do que as milhões que povoavam o firmamento. A luz da lua era intensa, como um gigantesco holofote. Algumas lâmpadas nos postes em frente do conjunto de barracos escuros e desconjuntados estavam quebradas e não haviam sido substituídas. Os funcionários da concessionária de energia elétrica tinham receio de ir lá, para trocá-las. O local tinha má fama, como esconderijo de bandidos ou ponto de venda e consumo de drogas.

É verdade que a polícia tinha muito trabalho nesse local. Mas boa parte da má fama era fruto de puro preconceito. Ninguém que não morasse naquela fechada e aparentemente hostil comunidade se atreveria a circular por aquelas bandas, ainda mais à noite. Esse medo devia-se muito à desinformação ou ao excesso de precaução em relação à segurança pessoal. Além disso, não havia motivos para quem não morasse ali para visitar o lugar. Não era, obviamente, nenhum ponto turístico de Campinas.

O movimento de carros na Rodovia Dom Pedro I continuava intenso, ao contrário das previsões. Centenas de veículos, com faróis acesos, rompiam a escuridão, formando uma espécie de enorme e fantasmagórica centopéia, de pernas de fogo. Eram famílias que, retardatariamente, dirigiam-se para as praias do Litoral Norte, para aproveitar o que fosse possível do feriado prolongado. Em alguns casos, eram casais de namorados à procura de locais ermos para seu romance, ou "transa", como diziam os jovens.

A Ceasa, em frente, estava com todos os pavilhões iluminados. Centenas de caminhões descarregavam caixas e mais caixas de produtos hortifrutigranjeiros, vindos de muito longe, para abastecer a voracidade da grande metrópole e sustentar a cidade devoradora e perdulária, com mais de setecentas mil bocas para alimentar.

Para os caminhoneiros, heróis anônimos das precárias estradas do País (muitas, meras picadas inseguras e esburacadas), não existe esta coisa de Natal. Eles só pensavam em deixar as cargas em segurança, nos locais de destino, e conseguir novas, para que o retorno não resultasse em prejuízo e a viagem pudesse ao menos se pagar. Muitos estavam ainda pagando os seus caminhões a prestação e tinham que fazer das tripas coração para arranjar o dinheiro da mensalidade, acrescida invariavelmente de juros enormes.

(Continua)

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