Friday, December 29, 2006

Há mais de 50 anos


Pedro J. Bondaczuk


O escritor Paul Bourget afirmou que "quando esperamos, os segundos são anos; quando recordamos, os anos são segundos". Nada mais verdadeiro. Recordo-me, como se houvesse ocorrido hoje de manhã, do dia em que cheguei a São Paulo, vindo da minha terra natal, Horizontina, no Rio Grande do Sul, de "mala e cuia", para iniciar nova vida em uma cidade que me era absolutamente estranha e que me pareceu hostil e assustadora. Foi há mais de 50 anos, para ser mais exato, há 56, em 1948 (do mês não me recordo, mas deveria ser novembro, já que não fazia nem frio e nem calor. Mas poderia ser março, ou abril ou, dezembro. Sei lá!).
Eu era um garotinho mimado,de cinco anos de idade, criado até então sob as asas protetoras de uma enorme família de imigrantes do Leste Europeu, constituída dos meus pais, de uma irmã que então tinha poucos meses de vida, muitos tios e alguns primos, embora só um, o Sacha, da minha idade.
Não sabia uma única palavra de português, já que em casa só se falava o russo. Sentia-me, portanto, como um extraterrestre, que houvesse desembarcado de uma nave espacial em um planeta estranho, cheio de perigos insuspeitados. Aliás, até hoje, São Paulo passa-me essa impressão, embora eu tenha mais lembranças agradáveis, do que ruins, dessa que é a terceira maior metrópole do mundo. Seu gigantismo me assusta.
Minhas lembranças da infância são descontínuas. Não guardam ordem cronológica e me parecem, muitas vezes, incoerentes. O tempo distorce os fatos em nossa mente, comprometendo a exatidão, como o fazem as águas de um lago, por exemplo, que reflitam a nossa imagem. É impossível precisar o quanto existe de fantasia e de realidade nessas reminiscências. No entanto, algumas impressões sensoriais ficaram gravadas em meu subconsciente. Quando me lembro delas, é como se as estivesse sentindo de novo.
Recordo-me, por exemplo, da sensação desconfortável em relação ao barulho das ruas centrais de São Paulo, principalmente da Praça João Mendes, em frente ao fórum paulistano. E não era um milésimo, em termos de decibéis, do que atormenta o paulistano hoje.
Eu estava assustado com tantas pessoas e veículos, transitando para cima e para baixo, como se fossem formigas ao redor de um gigantesco formigueiro. Agarrei-me ao pescoço do meu pai, que me carregava no colo, com medo de que, se me desgrudasse dele, alguém pudesse nos separar para sempre ou me fazer algum mal. Seus braços fortes, de camponês jovem e saudável, acostumado às durezas do trato da terra, serviam-me de refúgio. Foi uma das raras vezes em que me senti de fato totalmente protegido de qualquer risco.
Outra lembrança marcante é a do cheiro dos gases dos escapamentos de veículos, principalmente dos ônibus. Embora a fumaça me sufocasse, achei-a, a princípio, com odor até agradável, diferente de qualquer outro aroma que eu havia aspirado até então. Provavelmente o combustível usado há 50 anos não tinha tanta mistura quanto o atual. Ou era o efeito da novidade que fazia esse cheiro parecer com o de alguma exótica flor dos trópicos. Hoje, não suporto a fumaça que sai do escapamento de ônibus e caminhões.
Uma coisa absolutamente nova para mim foi o sorvete. O primeiro que experimentei foi um enorme picolé de uva. A sensação inicial, confesso, foi desagradável. Aquele estranho cilindro molhado era tão gelado a ponto de amortecer-me os lábios e provocar uma espécie de dor nos dentes. Junto com o desconforto, porém, havia uma sensação gustativa bastante agradável. Tão logo terminei de chupá-lo, pedi outro ao meu pai que, ou por de fato achar que um eventual exagero poderia me fazer mal, ou por não ter dinheiro (o que era o mais provável), se recusou a atender minha exigência.
Outra lembrança, esta de três anos mais tarde, é a do Jardim da Luz, onde paramos para uma fotografia tirada por um fotógrafo "lambe-lambe", que fazia ponto no local. Tenho essa foto até hoje. Nela, apareço sério e compenetrado, como se estivesse em vias de assumir a secretaria-geral das Nações Unidas ou de receber a faixa de presidente da República. Lendo a afirmação do mestre Jossei Toda, citada pelo humanista Daisaku Ikeda, em seu livro "Crianças de Vidro e Outros Ensaios", concluo que suas palavras cabem como uma luva para descrever o que tem sido a minha trajetória ao longo dos meus mais de cinqüenta anos de idade.
Diz o citado intelectual: "A vida humana não é algo triste. É possível gostar da vida independente de onde se viva, em que tipo de casa se more, que comida se coma ou que roupas se vista. Se se entendem as leis da vida, então esta pode ser feliz. Não se exalte por coisa alguma. Não tema coisa alguma. Em tudo, utilize seu intelecto e poder de raciocínio. Deixe sua vida ser impregnada por sentimentos de puro amor". Foi o que fiz.
Quando revejo os caminhos que trilhei, da minha Horizontina natal da infância até a Campinas de hoje (onde sou cidadão honorário), sinto-me uma pessoa privilegiada por essas experiências, mesmo as amargas. Concluo (e assim me sinto) que, dentro das circunstâncias, e face tudo o que passei, sou um ser humano feliz!

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