Monday, December 18, 2006

O remorso


VI- O REMORSO

(Continuação)

José, ao descer a escada cavada no barranco, que conduzia à favela (ela ficava num acentuado declive, quase num buraco), julgou ter ouvido o choro nervoso de um recém-nascido. "Deve ser engano", pensou. "Não pode ser ainda a criança. Ela dever nascer dentro de três dias", concluiu. Havia um gato nas redondezas que, quando transava, miava como um bebê chorando. Já havia enganado muita gente.

Mas José apurou o ouvido. E desta vez, o som característico do choro de criança recém-nascida ecoou nítido no ar. Como Maria era a única grávida de nove meses na favela, a conclusão foi óbvia. Seu filho nascera. Era uma música para o ouvido de quem, como ele, aguardava com tamanha ansiedade aquele momento.

José, literalmente, correu na direção do seu barraco, com o coração aos pulos, tomado por sentimentos contraditórios: orgulho, medo, emoção etc. Mal sentia o peso do enorme engradado carregado de laranjas, tomates e pepinos que ganhara na Ceasa e que levava apoiado às costas. Estava transtornado. Não sabia se ria ou se chorava ou se fazia as duas coisas ao mesmo tempo.

Estava "andando nas nuvens", como costumava dizer sempre que alguma coisa excepcionalmente boa lhe acontecia, e orgulhoso demais por haver se tornado pai. Inexplicavelmente, uma sombra de preocupação surgiu de repente em sua mente. Referia-se ao futuro desse novo ser, pelo qual seria o responsável, pelo resto da vida.

---"Provavelmente, meu filho vai passar as mesmas angústias, misérias e humilhações que eu" –, pensou, entre revoltado e conformado.

---"Dificilmente essa criança vai deixar de ser um burro de carga, igualzinho ao pai, quando crescer" –, resmungou frustrado, sem querer que isso ocorresse, mas impotente para alterar a sua realidade.

---" É quase certo que será uma criança sem escola, sem diversões, sem boa comida, todo dia, na mesa. Sem roupa bonita e sem brinquedos caros. Sem tanta coisa que só o dinheiro pode comprar" –, prosseguiu. – "Isso, se ao menos conseguir chegar a viver o suficiente para desejar tais coisas, o que vai ser muito difícil neste buraco nojento" –, concluiu, angustiadamente lúcido.

José passou da euforia à depressão. Do orgulho ao arrependimento. Sentiu remorso de haver colocado essa criança no mundo. Sentiu-se um vilão, um animal, um tremendo canalha, ao mesmo tempo em que pensou, com carinho incontido, em Maria, a sua Maria, corajosa e fiel, trabalhadora e tão amorosa.

(Continua)

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