Tuesday, December 26, 2006

Lembranças da várzea - 13


Pedro J. Bondaczuk


O ponto vulnerável do Flamenguinho, quer na temporada inteira de 1961, quer na metade da de 1962 – tanto nos amistosos quanto no Campeonato da Liga Sancaetanense de Futebol – era a sua defesa, mais especificamente, seu miolo de zaga. Sua grande deficiência eram as bolas altas. Tomávamos gols incríveis de cabeça, e nos momentos mais críticos de determinadas partidas, obrigando o ataque a se desdobrar para compensar as burradas defensivas. Na maioria das vezes, dava certo (principalmente quando o Celso estava inspirado e ele estava quase sempre), e vencíamos os jogos, embora o placar não refletisse a nossa superioridade. Mas nem sempre isso funcionava. Havia ocasião em que jogávamos de forma arrasadora, como o Santos dos bons tempos, mas perdíamos ou empatávamos os confrontos, em decorrência de falhas defensivas.
Lembro-me de um episódio que ilustra bem essa situação. Foi num jogo contra o então famoso Galo de Ouro, da Mooca, um dos grandes times da várzea de então, que estava há mais de cinqüenta partidas sem perder. Desafiamos esse esquadrão para um tira-teima, que ocorreu ainda no campo do Pira, em maio de 1961. Nesse dia, o Flamenguinho se superou. Tudo dava certo para a gente. O Celso (para variar) fez um gol antológico, de deixar o torcedor sem fala.
Foi um jogo brilhante, do ponto de vista técnico, para crítico nenhum botar defeito. Era um toma-lá, dá-cá constante, um equilíbrio total entre os dois times. Por volta dos 40 minutos do segundo tempo, estávamos ganhando, e jogando bem. Tudo indicava que iríamos quebrar a invencibilidade do poderoso adversário. Foi quando ocorreu uma falta na lateral direita da nossa área. O Jorge armou a barreira, com três jogadores, mas estava claro que o ponta-esquerda iria alçar a bola para alguém cabecear. E foi o que fez. Porém, o Orestinho, nosso quarto-zagueiro, estranhamente, não saiu do chão. E o meia-direita adversário, que era baixinho, ainda precisou se abaixar para cabecear, livre, para o gol, empatando a partida.
Um senhor idoso, que estava ao meu lado (que não era da vila e acho que era torcedor do Piratininga), comentou com um companheiro, a respeito do Flamenguinho: “Esse time é muito bom! No dia em que consertar essa defesa, será imbatível!”. Foi o que aconteceu quando consegui, finalmente, resolver esse problema, antes do início do campeonato da Liga de 1962. A solução veio com a chegada da família Sartori ao clube.
Orestes e Cali atuavam no General Motors e eu já havia visto a dupla jogar pelo ótimo time dessa indústria. Fiquei impressionado! E tentei o que parecia impossível: convencer os irmãos a deixarem um clube onde tinham todas as regalias possíveis, para virem atuar num outro, em que teriam que pagar para jogar. Por incrível que pareça, consegui convencê-los. Inscrevi ambos e, de lambuja, ganhei o concurso de um terceiro irmão, o Wilson.
Antes da chegada do Orestes e do Cali, o nosso miolo de zaga era integrado pelo Pedro e Orestinho. O primeiro, um grande atleta, com grande impulsão, muito fôlego e marcador implacável, era o “carregador de piano” da defesa. O ponto vulnerável estava na lateral-direita. Jogava, nessa posição, o Wanderley, um garoto de 18 anos, voluntarioso, mas com uma série de deficiências técnicas, de fundamento. Era baixinho, marcava mal e tinha a mania de querer “jogar com classe”. Esse setor era um buraco na nossa defesa.
Cansei de recomendar-lhe que não deixasse o ponta cruzar bolas para a área. Em vão. Os cruzamentos, pelo seu lado, sucediam-se o jogo todo, e em todos os jogos, redundando em gols e mais gols dos adversários. Pela esquerda, o Paulo Búlgaro, embora excelente marcador, apelava a toda hora e fazia faltas desnecessárias. E o Orestinho, embora ótimo na marcação, e com muito senso de cobertura, era péssimo cabeceador.
Quando os irmãos Sartori chegaram, além de escalá-los de imediato, como titulares da zaga (estavam super-entrosados, pois há anos jogavam juntos no General Motors), fiz outra mexida na defesa. Mantive o Pedro na equipe, mas deslocado para a lateral-direita, no lugar do Wanderley. E ele adaptou-se logo, sem nenhuma dificuldade, à posição. Parecia, até, que havia jogado a vida toda por esse setor. Craque de verdade é assim.
A partir daí, paramos de levar gols de cabeça, tanto os difíceis quanto, muito menos, os fáceis. E deu no que deu: fomos campeões da Segunda Divisão da Liga em 1962 e da Primeira, dois anos após, cumprindo as previsões daquele torcedor, no histórico jogo contra o Galo de Ouro da Mooca, no campo do Pira.
O difícil foi convencer o Orestinho a jogar no segundo quadro. Ele chegou a pedir demissão do clube, mas foi convencido pelo Neuclair a voltar atrás. Com o tempo, gostou tanto de atuar no time de baixo (onde fazia dupla com o outro irmão Sartori, o Wilson), que quando eu precisava dele na equipe principal, se recusava a jogar. E eu era forçado a fazer improvisações. O engraçado é que a defesa do segundo quadro era um paredão e raramente era vazada. O Orestinho e o Wilson entendiam-se só pelo olhar. Eram demais!
Outro ponto a favor do Orestes, é que foi dele o gol do título de 1964, na dramática partida em que o Flamenguinho empatou com o Vila Gerte, no campo do adversário, por 3 a 3. Muito torcedor nosso contesta isso até hoje, argumentando que depois desse jogo, o time realizou ainda mais três, e venceu todos eles. Não fosse, porém, esse providencial empate, que nos manteve um ponto à frente desse poderoso esquadrão que até então era o maior ganhador de campeonatos da Primeira Divisão da Liga, nossa tão sonhada conquista teria fugido das nossas mãos.
Enfatizo que, na época, não existia essa coisa de zagueiros irem para a área adversária, nos lances de escanteio ou de falta, para tentarem o cabeceio. Ademais, tínhamos o Tatinho, emérito cabeceador e centroavante com “cheiro de gol”, como se costuma dizer ainda hoje dos artilheiros. Quando tomei essa decisão pela primeira vez, de liberar o Orestes para ir à área adversária, todos me chamaram de maluco. Foi num jogo em que perdíamos e precisávamos do empate a qualquer custo e em que tanto fazia perder por um como por dez gols de diferença. Deu certo, na oportunidade. Por isso, passei a utilizar essa “arma” em outros momentos decisivos, como fator surpresa. Raramente falhou. Porque o Orestes era bom de cabeça não só para evitar gols adversários, mas, também, para fazê-los a nosso favor.

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