Friday, December 15, 2006

Lembranças da várzea - 12


Pedro J. Bondaczuk


Os laterais do Flamenguinho, do primeiro e do segundo quadro, eram muito especiais, tanto como atletas, quanto como figuras humanas. Três deles, por sinal, eram velhos amigos de infância meus e moravam na mesma rua que eu. O quarto, conheci no saudoso Instituto Sancaetanense de Ensino (cujo diretor era o legendário professor Vicente Bastos) situado na Rua Baraldi, onde estudei por três anos. Era procedente de Santos e morava em uma pensão da cidade. Fizemos sólida amizade, mas isso não foi o suficiente para que eu lhe desse a camisa titular do nosso time. Nunca misturei sentimentos com futebol. Objetividade era e sempre foi o meu lema.
Antes de identificar esses atletas e comentar suas características, devo assinalar que a função dos laterais, nesse tempo, era muito diferente da atual. Cabia-lhes, basicamente, a responsabilidade de marcação pelo seu setor, formando um quarteto defensivo com o miolo da zaga. Raramente esses jogadores chegavam, sequer, até o meio de campo. Além de marcar bem, era desejável que tivessem um bom passe, para o início das jogadas de ataque.
Para que se tenha uma idéia da rigidez das funções dos laterais naquele tempo, basta citar um único (e clássico) exemplo. Em junho de 1958, na estréia da Seleção Brasileira na Copa do Mundo da Suécia, contra a Áustria, o jogo estava bastante complicado para os comandados de Vicente Feola. Os austríacos fechavam-se na defesa e contra-atacavam com rapidez, levando muito perigo à meta de Gilmar, obrigando nosso goleiro a fazer salvadoras defesas.
Quase no final do Primeiro Tempo, porém, num lance genial, desses raros de se ver ainda hoje, Newton Santos (que sabia tudo de futebol e mais um pouco), pegou uma bola na lateral da nossa área e avançou com ela, rumo à meta adversária. Foi driblando, em velocidade, um, dois, três austríacos e, finalmente, driblou toda a zaga. Tão logo vislumbrou uma brecha, desferiu um tiro certeiro e fez um gol antológico, que abriu o caminho para a vitória do nosso selecionado, naquela ocasião, por 3 a 0.
Foi um lance admirável, não é mesmo? Mas os narradores esportivos, e, sobretudo, os comentaristas, não o entenderam dessa maneira. Em vez de exaltarem a coragem, a técnica e a visão de jogo do notável atleta botafoguense (apelidado de “Enciclopédia do Futebol”), criticaram-no, e muito. Chamaram-no de irresponsável e condenaram sua alegada “desobediência tática”. Esses críticos argumentavam que, ao avançar para o ataque, sem ordem do treinador, Newton Santos havia desguarnecido, perigosamente, a nossa defesa, pelo seu setor. Enorme bobagem, claro! Mas era assim que os tais experts em futebol entendiam a função dos laterais.
Hoje, os que atuam nessa posição já nem mesmo recebem esse nome. São, de fato, “alas”. Ou seja, substituem os pontas, com a diferença de que têm a obrigação de recuar até a própria área quando seu time é atacado. O modo de jogar dos laterais do início dos anos 60 era, mais ou menos, como o dos volantes atuais. A diferença estava na colocação em campo. Enquanto naquele tempo eles guarneciam os lados da defesa, os volantes de hoje em dia concentram-se mais no miolo defensivo. Só abrem para as laterais para fazer a cobertura dos alas, quando estes avançam.
O lateral-direito do Flamenguinho era o meu xará, Pedro (que vem a ser tio da apresentadora de TV Angélica). Era um atleta completo. Além de futebol, jogava vôlei e chegou a integrar a seleção de São Caetano, nesse esporte, nas várias competições que esta disputava, em especial nos Jogos Abertos do Interior (em 1964, a cidade sediou, com brilho, essa olimpíada tupiniquim). Firme na marcação, com boa estatura e impulsão fora do comum, tinha um excelente passe, o que era importante no desafogo da defesa e para armar mortais contra-ataques pela direita.
Seu substituto imediato, curiosamente, tinha o mesmo nome. Para diferenciá-los, nós chamávamos o lateral-direito do segundo quadro de Pedro Cervera (não era hábito, na época, denominar os jogadores com o uso de nome e sobrenome). Era santista, mas logo, logo se enturmou com o pessoal do Flamenguinho e até parecia que havia nascido e sido criado na Vila Camila, tamanha a sua identificação com a nossa turma. Cursava o 2º científico no Instituto Sancaetanense de Ensino (estava na minha classe, o 2º B noturno) e pretendia ser engenheiro. Não sei se conseguiu. Provavelmente sim, pois era ótimo estudante. Coube-lhe a tarefa de acertar inúmeros amistosos para o nosso time no litoral, dado o seu grande conhecimento da várzea da Baixada Santista. Os jogadores do Flamenguinho gostavam muito desses desafios, já que, depois das partidas, podiam usufruir das praias de Santos. Bem mais baixo do que o seu xará, o Pedro Cervera tinha, porém, um passe melhor do que ele. Nas vezes em que atuou no time titular, não decepcionou. Claro que minha preferência recaía no Pedrão, meu vizinho, que era, disparadamente, muito mais atleta.
Meu lateral-esquerdo ideal, o Neuclair, por estranho que pareça, jogava no segundo quadro. Não que eu tivesse qualquer implicância com ele e o preterisse pelo Paulo Búlgaro. Até pelo contrário. Ele era tão atleta quanto o Pedro, o lateral-direito, com uma vantagem: era muito mais técnico. Sabia desarmar sem fazer falta e nunca dava chutões. Saía, invariavelmente, jogando, com lisura e categoria, e passava bolas redondinhas para o ponta-esquerda armar mortais contra-ataques.
O Neuclair era diretor-social do Flamenguinho. Era uma espécie de conselheiro não só dos jogadores e associados do clube, mas de todo o pessoal da vila. Embora não gostasse, a turma o chamava de “padreco”, por ser uma pessoa muito religiosa e que nunca deixava de ir à missa. Era o amigo ideal para todas as horas, um sujeito absolutamente confiável, leal, sincero e solidário. Grande figura!
O Neuclair preferia jogar no segundo quadro, principalmente durante o campeonato da Liga, para ter os domingos livres. Nossos aspirantes, nessas ocasiões, faziam seus amistosos aos sábados. Nos inícios de ano, antes do começo da competição oficial da cidade, esse time também atuava aos domingos, é verdade, mas seus jogos começavam e terminavam mais cedo. Só por isso o Neuclair não era o titular. Ou seja, porque não queria.
O dono da posição, o Paulo Búlgaro (tinha esse apelido, obviamente, porque seus pais eram oriundos da Bulgária), era firme na marcação e excelente na cobertura. Tinha, todavia, um grande defeito: usava e abusava de jogadas violentas, o que me trazia muitos problemas, quando não, seriíssimas dores de cabeça. Não raro o Flamenguinho terminava seus jogos com dez jogadores em campo, porque ele era expulso, em decorrência de jogadas mais ríspidas. Confundia vigor e firmeza com violência. Eu passava horas e mais horas tentando fazer a sua cabeça, em especial nos dias de treinos, sem grandes resultados. Mas quando estava com vontade de jogar, e deixava de dar pancadas, esse vigoroso atleta (tinha uma saúde de dar inveja) constituía-se num paredão pelo seu setor. Não raro, porém, os pontas adversários sumiam do jogo, tão logo levavam a primeira botinada mais forte do Paulo Búlgaro. Impunha-se pela força diante dos que pipocavam (e estes, a bem da verdade, eram muitos).

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