Monday, December 18, 2006
O outro Jesus
(Conto de Natal)
Pedro J. Bondaczuk
José da Silva foi trabalhar naquela noite, véspera de Natal, com uma preocupação a mais, além das rotineiras, inerentes às tarefas que exercia e ao próprio sustento. Maria, companheira de alegrias e sofrimentos – mais estes do que aquelas – poderia dar à luz a qualquer momento ao primeiro filho do casal.
Mas José confiava na perícia e na solidariedade de dona Marta, velha parteira, que já ajudara inúmeras crianças a virem saudáveis ao mundo, sem um único caso de morte de bebês ou parturientes ou outro tipo de acidente pós-natal. É verdade que ultimamente vinha fazendo menos partos. Excelentes hospitais públicos atendiam, agora, a sua antiga clientela.
Ademais, José esperava que o nascimento fosse ocorrer somente dali a três dias, embora sua mulher não houvesse consultado qualquer médico. Não por teimosia, mas por impossibilidade ou desconhecimento. Por ser biscateiro, não tinha registro em carteira. Por conseqüência, não contava com direito a atendimento pela Previdência Social. Não dispunha, igualmente, de condições para pagar um obstetra, já que o que ganhava, mal dava para o precário sustento. E desconhecia outro meio que possibilitasse assistência à companheira.
José, negro forte, com feições bonitas, dentes brancos e mãos grandes e calejadas, acostumadas a duras tarefas, era uma pessoa agradável e bem-humorada. Nessa tarde, desdobrava-se para concluir a tarefa de descarga de caminhões, nos boxes da Ceasa-Campinas. Hoje estava com pressa maior do que de ordinário. Queria acabar logo o serviço e voltar para casa. Não porque fosse véspera de Natal. "Pobre não tem tempo, nem grana, para essas coisas", costumava dizer, quando alguém, brincando, perguntava como ele iria passar as festas. José nunca soube, ou pôde, ou quis distinguir esse dia de outro qualquer.
A tarde estava quente e abafada, mas não havia previsão de chuva. O céu estava claro, com enorme lua cheia. José não parou para o gole de água costumeiro e dois dedos de prosa com outros biscateiros e motoristas e nem para ouvir as brincadeiras deles, entre uma descarga e outra, como sempre fazia. Estava com inusitada pressa. Não via a hora de dar a tarefa por concluída. Teve a tentação de abrir mão de duas ou três descargas, para voltar correndo para casa.
Sua urgência não se devia a nenhum programa ou compromisso. Prendia-se a um fato muito mais importante e pessoal. É que Maria, "companheira de miséria e sofrimentos, parceira de cama e mesa", como costumava caracterizá-la, poderia ganhar nenê nessa noite. "Vai saber", pensava, precavido. Era, pelo menos, o que intuía, embora dona Marta garantisse que não e assegurasse que a criança viria ao mundo dentro de três dias, "nem mais e nem menos".
Quando saiu para o trabalho, por volta do meio-dia, a mulher já sentia dores, uma espécie de pontada, que ia e vinha de novo. A bolsa d'água houvera se rompido, embora ele não soubesse disso. Seu conhecimento do corpo feminino era muito restrito. Mas as cólicas, a intervalos regulares, que diminuíam cada vez mais, eram o aviso de que o momento da criança nascer estava próximo, talvez em questão de horas ou mesmo minutos, contrariando o prognóstico de dona Marta. "Ela não é Deus para saber de tudo", pensava.
José queria estar ao lado de Maria no instante do nascimento. Contava poder ajudar em alguma coisa, embora não atinasse no quê. Sentia, ou ao menos desejava, ser útil, participar, auxiliar ou até mesmo fazer o parto, em caso de necessidade, embora não tivesse a mais remota noção acerca dos procedimentos. "Se for preciso eu me viro", dizia com seus botões.
Contudo, não podia faltar ao trabalho, ou sequer abreviar as tarefas. A época era muito difícil e se perdesse esse "bico", embora fosse autônomo, sabia que não teria condições de encontrar outro, pelo menos nos próximos dias. O serviço, apesar de pesado, não era ruim. Rendia mais do que recebeu em outros, até com carteira assinada, que fez quando chegou a Campinas, vindo do Norte do Paraná.
(Continua)
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