Tuesday, December 05, 2006

A revelação


(Continuação)

Como Tânya não parasse de chorar, desde o momento em que recebera aquele telegrama misterioso que tinha em suas mãos, comecei a ficar preocupado.
--- "Será que o problema é dela, envolvendo alguma coisa que lhe aconteceu enquanto esteve na aldeia ou é da correspondência, que trouxe alguma notícia tão ruim a ponto de abalar tanto uma pessoa tão equilibrada e jovial como minha irmã mais nova?" –, fiquei perguntando a mim mesmo, sem saber o que fazer.
O primeiro impulso foi o de tirar aquele papel, que ela amassava convulsivamente, de suas mãos. Não sei explicar porque, porém, algo me impedia de agir dessa forma. Uma sombra de mau agouro desceu sobre mim. Era um pressentimento de que aquela folha branca, com o timbre do Exército do czar, poderia modificar o meu destino. E eu tinha medo.
Nunca acreditei nessa história de sexto sentido. Aliás, sempre fui tido como o membro mais céptico, racional e equilibrado da nossa família. Jamais fui dado a arroubos místicos e quando um dia Andrei, meu futuro cunhado, falou sobre certas experiências que haviam sido feitas em Moscou, acerca de transmissão de pensamentos à distância, só pude dar um sorriso de mofa e de absoluta incredulidade.
Até hoje ainda costumo brincar com ele a esse respeito, zombando da sua ingenuidade em acreditar em tudo o que lhe dizem. – "Os moscovitas são cheios dessas invenções" –, disse-lhe na oportunidade, em tom de galhofa.
Lembrei-me que havia sentido essa mesma sensação estranha, que estava experimentando agora, no dia em que mamãe morreu. Corri para a cozinha e trouxe uma dose de conhaque para reanimar Tânya, que estava pálida, trêmula e prestes a desfalecer. Agora eu estava alarmado de fato!
Pensava em levar minha irmã à aldeia, para que o doutor Bóris desse uma olhada em seu estado, embora não confiasse muito no velho bêbado. Era bem possível que neste instante ele estivesse roncando, encharcado de vodca, como um urso vadio e desdentado, em estado de hibernação etílica.
A cor começou a voltar ao rosto de Tânya, após ingerir a dose generosa do conhaque que a forcei a beber, entre tosses e gemidos. Suas mãos já não estavam mais tão frias como antes, embora ela ainda não conseguisse articular qualquer palavra inteligível, em virtude dos espasmódicos soluços que lhe sacudiam todo o corpo.
Gentilmente, tirei o papel de suas mãos, mas não tive coragem de ler imediatamente. Dobrei-o, supersticiosamente, e o deixei na escrivaninha de papai, enquanto saía para o alpendre, para respirar um pouco o ar frio da tarde e meditar.
O céu estava escuro novamente. Nevava bastante, contrariando as previsões de melhoria do tempo. Tudo levava a crer que iria nevar a noite toda e talvez no dia seguinte inteiro. Yulka veio lamber-me as mãos, todo assanhado, e eu fiz um demorado carinho em sua orelha peluda.
Dentro de casa, podia ouvir, ainda, os soluços abafados de Tânya. – "Alguma coisa de muito ruim aconteceu com papai e Kyrillo" –, concluí. – "Somente eles poderiam provocar uma reação tão intensa em minha irmã, a predileta do velho" –, raciocinei.
Decidi enfrentar a realidade, fosse ela qual fosse. Subi primeiro para o meu quarto, para conferir uma dúvida que, de repente, me assaltou o espírito. Abri a cômoda e...Surpresa! Os presentes que havia ganhado, na noite passada, de papai e de Kyrillo, não estavam mais lá.
Desci a escada, como um raio, e fui perguntar a Tânya se havia mexido nas minhas coisas. Ela balançou a cabeça, em negativa. – "Estranho" –, pensei. – "A não ser minha irmã, ninguém mais esteve em casa" –, refleti. Entretanto, atribuí a negativa dela ao seu estado emocional, visivelmente abalado.
--- "De certo ela esqueceu, ou prefere não me dizer nada agora, para não me irritar" –, concluí. Contive o meu ímpeto inicial, de interrogá-la mais severamente.
Subi novamente e fui para o gabinete de papai. Em tudo, ali, eu sentia a sua presença. Em seus papéis, em seus livros, em seus móveis austeros, mas de muito bom gosto e num retrato de mamãe, pintado por um artista da aldeia, que praticamente dominava todo o aposento e podia ser visto de qualquer canto em que se estivesse.
Vi o papel dobrado, do jeito que eu havia deixado, sobre a escrivaninha. Ele exercia um fascínio até hipnótico sobre mim. Mas, estranhamente, estava dominado por um medo incrível daquilo que ele pudesse conter. Resolvi acabar de vez com aquele impasse. Afinal, nunca tive essas reações bobas. Desdobrei-o e comecei a ler.
A cada palavra lida, no entanto, entendia menos o seu significado. A minha primeira reação foi achar que aquilo era alguma brincadeira macabra. – "Mas quem faria uma coisa dessas e ainda usando papel timbrado do governo?!" –, refleti, desconfiado.
Reconheci, também, a assinatura do oficial que teria escrito a mensagem, pois se tratava de um velho amigo de papai, dos seus tempos de caserna. Até se hospedara em nossa casa, em várias ocasiões, quando vinha em missão do Exército a Moscou.
Aos poucos, as palavras foram penetrando em minha consciência e foi então que não entendi mais nada... A mensagem, em tom seco e formal, dirigida a mim, dizia, somente:
"Prezado senhor Illya Mikhailovich Kladunov:
Cumpre-nos a ingrata tarefa de comunicar a V. Sa. que Mikhail Illich Kladunov, capitão do Exército de Sua Majestade, o czar de todas as Rússias, e Kyrillo Mikhailovich Kladunov, soldado, ambos do 3º Regimento da 8ª Brigada de Cavalaria, foram mortos, em ação, no dia 5 de novembro passado, na Batalha de Inkermann, na Criméia. Tombaram como heróis, na defesa da Pátria. Aceite nossas sinceras condolências..."

(Conto publicado no livro "Quadros de Natal").

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