Tuesday, December 05, 2006

Presentes para todos


(Continuação)

--- "Illya, quase ia esquecendo, trouxe um presente para você" –, disse Kyrillo, como que subitamente se lembrando de algo que não deveria esquecer.
--- "Infelizmente não vou poder retribuir" –, respondi –, "afinal, como poderia adivinhar que vocês viriam?!! Há muito que não tínhamos qualquer notícia de vocês. A última, foi trazida por um cossaco, que pernoitou em nossa casa" – acrescentei, num tom misto de censura e de desculpa.
--- "Não se importe comigo, mano" –, disse Kyrillo. – "Quanto a escrever, seria impossível naquele inferno" –, aduziu, com um vinco de preocupação aparecendo-lhe na testa, como se alguma recordação mais trágica lhe emergisse à mente.
--- "Mas vamos, Illya, abra o seu presente" –, voltou à carga, readquirindo a animação. – "Pelo que eu saiba, há muito tempo você deseja algo assim" – , acentuou, sorrindo.
Desembrulhei, atabalhoado, o objeto, enrolado num jornal velho, todo borrado e desbotado, e não me contive. Corri para Kyrillo e dei-lhe outro longo abraço, mais apertado ainda do que o da recepção, sufocando aquele sujeito grandalhão, com olhar de criança indefesa, ao qual queria tanto bem.
Meu irmão havia trazido da Criméia um punhal turco, com cabo de madrepérola, cravejado de diamantes. Lembro-me que quando os dois partiram, eu havia manifestado o desejado de possuir uma arma dessas, que tinha visto numa gravura de enciclopédia na casa da Vera.
Meu pai não se fez de rogado. Levantou-se, solenemente, como se fosse fazer um discurso muito importante para os seus comandados, um velho hábito adquirido ao longo de sua extensa carreira militar, e disse:
--- "Também não me esqueci de você!". – E num gesto abrupto, passou-me um enorme pacote, que trazia escondido atrás da cadeira e que no meu entusiasmo pelo reencontro eu não havia notado até então.
--- "Vamos, abra e experimente!" –, acrescentou. – "Tirei as medidas por Kyrillo. Claro que descontando meio homem" –, aduziu, em tom de brincadeira. Meu irmão, perto de mim, era um gigante musculoso em presença de um raquítico anão.
Eu puxei a compleição física franzina da minha mãe. Desembrulhei o pacote, todo afobado, vidrado de curiosidade e de lá saíram um maravilhoso gorro de pele de marta e um grosso sobretudo marrom, cujos pêlos até brilhavam, de tão novos. Notava-se que eram artigos da melhor qualidade.
Beijei meu pai, comovido, e se não me falha a memória, parece que vi duas lágrimas querendo descer de seus olhos austeros e duros, para a sua barba negra, salpicada de fios grisalhos e desalinhada.
Ficamos conversando até as primeiras luzes do novo dia aparecerem na janela. Falamos de tudo, menos da guerra. Recordamos casos engraçados e episódios comoventes da história da nossa família. Cansado, convidei-os a se recolherem, ao que ambos responderam, quase que em uníssono:
--- "Não podemos! Viemos, apenas, para um último momento de confraternização. Nossa missão é bem longe daqui. Temos muito que viajar ainda".
Não sei explicar a razão, mas aquelas palavras soaram como um definitivo adeus. Procurei espanar aquele pensamento sombrio. "Que nada! O velho e Kyrillo sabem se defender! Afinal, não estão aqui comigo?!" – perguntei a mim mesmo, em tom de afirmação.
Mas aquela sensação estranha que me dominava teimava em permanecer no meu espírito. Naquele momento, atribuí o fato à despedida. O adeus sempre me comoveu, mesmo que a pessoa que me dizia essa palavra, ou a quem eu a enunciava, pudesse ser encontrada a qualquer momento ou mesmo no dia seguinte.
Não sei por qual razão, me lembrei que não vi o trenó e nem a parelha de cavalos de papai e de Kyrillo, quando voltei da aldeia. – "Talvez eles os tivessem deixado na casa de algum camponês da herdade" – , findei por concluir.
Minutos depois, pude ouvir ao longe o som dos sininhos amarrados no pescoço dos cavalos. O ruído afastava-se, lentamente, tornava-se cada vez mais fraco e indistinto, até que desapareceu de vez.
Subi para o meu quarto, localizado no segundo andar da casa, guardei, na vasta cômoda, os presentes que havia ganhado e só então me dei conta de que papai e Kyrillo não haviam trazido nada para Olga e nem para Tânya. Aliás, durante toda a noite, mal haviam falado delas. – "Por que será?!” –, pensei, intrigado. Achei isso muito estranho, mas resolvi não perder muito tempo buscando explicações para esse curioso detalhe.
Despi-me e deitei-me, exausto, sentindo ainda os efeitos de tantas e tão fortes emoções. Este fora o Natal mais feliz e surpreendente da minha vida. Dormi quase que de imediato.
Antes de cair no sono, naquele estado de semi-inconsciência que precede o desligamento completo da realidade, ouvi, nitidamente, as vozes de papai e de Kyrillo dizendo – "Illya, adeus! Seja forte! Cuide de Tânya e de Olga por nós!".
Julguei estar sonhando. Talvez até estivesse. Dormi, enfim. Fui despertado já bem tarde, cerca de uma hora da tarde do dia seguinte, com a voz de Tânya, galhofeira, como sempre, atazanando os meus ouvidos, chamando-me de preguiçoso. Pensei em contar-lhe de imediato a minha experiência noturna. Consegui conter-me, todavia, deixando para falar das novidades quando Olga retornasse da aldeia.

(Continua)

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