Tuesday, December 19, 2006

Espírito de Natal


Pedro J. Bondaczuk


O Natal, enquanto tema literário, já se prestou a textos imortais e perfeitos (na forma e na substância), em todos os gêneros, constantes nas melhores antologias nacionais e estrangeiras, de escritores como Anatole France e Eça de Queiroz, por exemplo ou Carlos Drummond de Andrade, Ciro dos Anjos e Humberto de Campos, entre tantos outros. Mas também foi causa (e continua sendo) de farta subliteratura. Originou (e continua originando), crônicas, contos e romances do tipo "água com açúcar" em profusão, com historiazinhas piegas, lacrimejantes e óbvias, que pecam pela falta de criatividade e onde abundam lugares-comuns. No jornalismo, via de regra, o que se escreve sobre o assunto também é uma "tragédia".

Por ser um tema explorado há quase dois mil anos, por escritores cristãos (e até por ateus confessos), é muito perigoso para quem teme o ridículo. Quase tudo o que poderia ser dito sobre a data já o foi, com variações somente no que se refere a personagens, locais e estilos. Um dos pontos mais batidos tem sido o que se refere ao chamado "espírito de Natal". Ou seja, a suposta predisposição de pensar no próximo, no miserável, no indigente, no solitário ou no sofredor, em contraposição à fartura e à alegria dos que são privilegiados, por ocasião desse dia. Uns, demonstram otimismo e fé na racionalidade humana e a certeza de que, um dia, seja quando for, não existirão mais famintos, desabrigados, excluídos ou segregados em nenhuma parte do mundo. Outros, não escondem seu ceticismo e desencanto sobre o egoísmo do homem e suas trágicas conseqüências.

Neste último grupo inclui-se, por exemplo, o escritor Mário da Silva Brito, que na crônica "Conversa vai, conversa vem", publicada no Suplemento Literário do jornal "O Estado de São Paulo", em 1961, destacou: "Pedem-me alegria. Mas como exercê-la sem que pareça uma afronta à infelicidade geral dos homens do mundo?! Só os inconscientes e os desalmados não percebem que a hora é de tristeza . De muita tristeza. Tenho mil perguntas a fazer e nenhuma resposta a dar. A mim e aos outros". Eu também faço, periodicamente, e não apenas por ocasião do Natal, uma infinidade de questionamentos. Contudo, ninguém, jamais, me respondeu, de forma convincente, a essas questões. Talvez não haja resposta para elas.

Ciro dos Anjos, no romance "O Amanuense Belmiro", relata o outro lado dos sentimentos despertados nas pessoas sensíveis por essa que é a data maior da cristandade. Escreve: "Natal! A humanidade se transfigura de súbito, neste dia extraordinário. Que elemento se introduzirá na essência das coisas para que tudo venha, assim, a apresentar uma face nova e desconhecida, e para que todos os seres ganhem uma expressão especial, quase graciosa, de agitada felicidade? As árvores se fazem mais verdes, e os pardais, como cantam!! Será o poder de criar e de transfigurar, que possui a alma humana, ou será uma efetiva transformação no tecido íntimo das coisas?" É a essa sensação de encantamento, de nostalgia e de suposta predisposição à caridade e até ao amor que muitos denominam de "espírito de Natal".

Eça de Queiroz, em texto publicado no livro "Cartas de Inglaterra", segue linha parecida com a de Mário da Silva Brito, achando que é um sacrilégio ter (e expressar) satisfação, sabendo da existência de tantas mazelas, injustiças e carências sociais. Afirma, o escritor português: "Nem eu sei realmente como a ceia faustosa possa saber bem, como o lume do salão possa aquecer, quando se considere que lá fora há quem regele e quem rilhe, a um canto triste, uma côdea de dois dias. É justamente nestas horas de festa íntima – quando pára por um momento o furioso galope do nosso egoísmo – que a alma se abre a sentimentos melhores de fraternidade e de simpatia universal, e que a consciência da miséria em que se debatem milhares de criaturas, volta com uma amargura maior".

E prossegue, mais adiante: "Basta então ver uma criança pasmada diante da vitrine de uma loja, e, com os olhos em lágrimas para uma boneca de pano – que ela nunca poderá apertar em seus miseráveis braços – para que se chegue fácil à conclusão que isto é um mundo abominável. Deste sentimento nascem algumas caridades de Natal; mas findas as consoadas, o egoísmo parte em desfilada, ninguém torna a pensar mais nos pobres, a não ser alguns revolucionários endurecidos – dignos de cárcere – e a miséria continua a gemer ao seu canto".

Essa questão de alegria ou tristeza, no Natal ou em qualquer outra ocasião, é muito relativa. Por exemplo, uma família de sem-teto do Parque Oziel, ou do Jardim Monte Cristo, na periferia de Campinas, que alimenta os filhos com a repugnante pasta, feita de papelão ralado com tomates apodrecidos (encontrados no lixo), o ano todo, ficará sumamente feliz com uma cesta básica, por simples que seja, que será encarada como um presente bastante precioso, "caído do céu", mesmo que tal donativo seja feito apenas por ocasião da festa natalina. Em contrapartida, o milionário, que participa da ceia a bordo de algum navio de cruzeiro pelo Caribe ou pelas ilhas gregas, ou no seu iate de US$ 300 milhões, se sentirá bastante "infeliz", até mesmo "mortificado", se o vinho que lhe for servido não estiver no ponto ou não for das melhores caves ou de safra nobre. Ou se achar que o peru ficou um pouco duro. Ou se o tempero do faisão não estiver ao seu gosto. Ou se o champanhe não estiver bem gelado e o caviar para acompanhá-lo não for da melhor procedência. Ou se as castanhas não forem importadas. O homem é mesmo assim: egoísta, insensato e contraditório. Daí Cristo ter vindo à Terra, na forma humana, para providenciar a sua redenção...Daí a necessidade de sermos sempre os "revolucionários endurecidos, dignos de cárcere", preocupados o ano todo, a vida toda, através de séculos sem fim, com o sofrimento dos pobres. Feliz Natal para todos!!

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