Vida curta, grande legado

O poeta Carlos Drummond de Andrade concluiu um de seus poemas com a seguinte indagação:

“Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim?”.

Há pessoas que vivem 80 anos ou mais e quando morrem não têm nada para deixar, não apenas aos seus familiares, mas à comunidade em que viveram. Outras, deixam rastros de destruição, de ódio e de rancor e, quando são lembradas, as lembranças são de um pesadelo que passou. Outras, todavia, desaparecem prematuramente, com uma bagagem de realizações tão grande que chega a ser desproporcional aos anos que viveram. Este é o caso da jornalista, poetisa e artista plástica Célia Terezinha Puccini Búrigo, falecida no início de junho de 1993, aos 43 anos de idade.
Esta companheira deixou, por exemplo, lições de dedicação, competência e garra nos seus 20 anos de jornalismo. Encarou a atividade como os vencedores dela encaram e devem encarar: como missão, muito mais do que como mera profissão. E foi, sem dúvida, uma vencedora, na medida em que realizou os seus propósitos com talento, com responsabilidade e com a visão social que compete aos bons comunicadores.
Mas Célia deixou mais, muito mais. Era inspirada poetisa, inovadora em termos de linguagem, possuidora de rara capacidade de, como destacou a seu respeito o grande Eustáquio Gomes, “dizer grandes coisas” com economia de palavras. Não foi por acaso que essa catarinense de Urussanga trouxe para Campinas, em 9 de junho de 1984, o prêmio consagrador no Concurso de Poesia e Conto Mulheres Entre Linhas, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura. O trabalho premiado foi o poema “Sifilização”, que mostra, sinteticamente, como esse arremedo de civilização que conhecemos está doente.
Eustáquio acentua: “Coloco Célia Búrigo entre Leminski (Paulo, poeta paranaense) e Carlos Vogt, duas das mais interessantes vocações da palavra dos últimos dez anos”. São dela estes versos:

“A sede de justiça
afogou-se num
tonel de coca-cola”.

E estes:

“A ditadura sobre os céus
assume a cadeira do Pai
já fabrica asas galvanizadas”.

E o citado poema “Sifilização”, premiado pela Secretaria de Estado da Cultura:

“(Deprê, quem diria).
O silêncio morde a alma
Até os ossos.
O enorme alvoroço no corpo
Trinca a aura e
O caroço
A memória se agiganta
Na calma do jantar.
Era uma vez um jantar
E mil vezes era uma vez.
Meninas riam, corriam
Nas largas tábuas de pinho,
Meninas em tafetá.
Um campeonato de grito
Puros comícios
Hoje sobram cadeiras e solta
Corre a alegria no asilo
O vazio e eu, em cochilos.
Silêncio
Agora sou outra”.

Célia também deixou vasta obra, como artista plástica que era. Deixou gestos imorredouros de solidariedade, com seu trabalho junto à instituição beneficente Professor Lairi Hans. Deixou uma imagem de doçura, de lealdade, de compreensão. Deixou, sobretudo, uma imensa saudade nos que a conheceram, privaram do seu convívio e tiveram a honra de contar com a sua amizade e companheirismo. Foi uma pessoa, portanto, que soube fazer o melhor uso possível do pouco tempo que o Senhor lhe emprestou. Por isso, faço meus os versos de Antero de Quental para dizer:

“Dorme o teu sono, coração liberto,
dorme nas mãos de Deus eternamente!”.


(Capítulo do livro “Por uma nova utopia”, Pedro J. Bondaczuk, páginas 89 e 91, 1ª edição – 5 mil exemplares – fevereiro de 1998 – Editora M – São Paulo).