Wednesday, May 10, 2006

O amigo da onça


Pedro J. Bondaczuk

O fabulista francês, Jean de la Fontaine, escreveu: "Como é bom ter um amigo verdadeiro! Procura os nossos desejos no fundo do coração, poupando-nos o pudor de sermos nós a revelá-los". Mas não tenho um só, o que já seria uma façanha nestes tempos angustiosos e incertos de violência e de desamor. Nem somente dez, cem, mil. Tenho dezenas de milhares! Talvez mais! Cada um deles mais fiel, mais leal, mais prestativo e mais doce do que o outro! Pode haver generosidade maior do que estas amizades?! Claro que não! Minha gratidão, por conseqüência, só poderia ser proporcional! E agora é maior ainda do que já foi um dia. Ao cabo destas linhas, o leitor vai entender porque.
Um dos meus hobbies favoritos é colecionar citações dos grandes mestres: sábias, poéticas ou sarcásticas, não importa. E uma das mais pitorescas e inteligentes e, sobretudo, bem-humoradas, que adicionei ao meu acervo é de Zora Neale Hurston. Diz: “Viver sem amigos é como tirar leite de um urso para o café da manhã. Dá muito trabalho e não vale a pena”. Como sou pessoa prática, sigo o caminho mais curto que me conduza ao prazer e à realização. Não quero “ordenhar ursos” a cada manhã. Por isso, cultivo as amizades, que me equilibram, promovem e indicam o caminho da felicidade.
Por tudo isso, por causa da minha postura, é que me senti agredido, dia desses, com o que classifico de traição (se não foi, não sei que classificação dar ao gesto), por parte de uma pessoa que se dizia minha amiga e que me “esfaqueou pelas costas” (claro, figurativamente). Passei um bom tempo tentando absorver esse golpe que, de fato, doeu, e muito. Todo mundo, algum dia, certamente, já passou por experiências como esta. Alguns não lhe dão maior importância e tocam suas vidas, como se nada houvesse acontecido. Outros, porém, (e este é o meu caso), ficam com suas convicções sobre amizade abaladas e acabam, até, sendo injustas com os verdadeiros amigos, aqueles que sempre mostraram lealdade, fidelidade e presteza no servir (e, principalmente, no ouvir).
O incidente a que me refiro me chocou por ser o mais bobo possível. Passando por certas dificuldades financeiras (e quem não passa, nestes tempos bicudos?), confidenciei a essa pessoa, personagem desta despretensiosa crônica – e que prefiro não identificar –, que não era para eu estar atravessando essa situação de aperto, já que tenho créditos a receber, por serviços prestados, e que ainda não foram pagos. Mencionei alguns dos devedores, inocentemente, sem criticar ninguém. E citei este fato só de passagem, entre tantos outros assuntos, e somente a este indivíduo e ninguém mais, numa espécie de desabafo, tão comum e normal entre amigos que se prezam e que confiam um no outro.
Qual não foi minha surpresa, porém, quando recebi, no dia seguinte, um e-mail furioso do devedor (de um deles), citado (reitero) só de passagem, me censurando por “difamá-lo publicamente!”. Estou consciente de haver errado! Em vez de me queixar com quem quer que fosse sobre dinheiro a receber, deveria cobrar diretamente quem me devia. Mas como poderia adivinhar que uma simples queixa, feita de passagem, sem nenhuma malícia, iria adquirir as proporções que adquiriu?
Ademais, eu não disse nenhuma mentira. Não fiz, também, nenhuma crítica aos devedores. Somente relatei o fato, e nada mais. E muito menos fiz isso publicamente, como fui acusado de ter feito. Confidenciei o fato a uma única pessoa, em quem depositava absoluta confiança e de quem esperava, senão ajuda para receber o dinheiro de que sou credor, pelo menos compreensão e solidariedade. Não tive nada disso.
Agora sim torno público o que aconteceu. Contudo, conto o “milagre”, sem revelar o “santo”. Faço este relato apenas para ilustrar os riscos de uma amizade falsa. Que diabos de amigo é este que é incapaz de guardar só para si uma inconfidência, ou até mesmo uma eventual fofoca (que não era o caso)? O que ele lucrou com o papel de “leva e traz”? Que bem prestou a quem quer que fosse? Sua traição somente semeou desídia e amargura, principalmente no devedor, a quem julgou (pelo menos é o que penso) estar beneficiando. O caso poderia ter terminado em tragédia, em processo, em agressão mútua ou até mesmo em morte. Felizmente, não terminou.
O saudoso chargista potiguar Péricles (que se suicidou no período de festas de fim de ano de 1960) se consagrou com a criação de um personagem pitoresco – bastante popular nos anos 50 – que foi amplamente divulgado na revista “O Cruzeiro”: “O Amigo da Onça”. Tenho em meus arquivos cerca de uma centena dessas charges, cada uma mais engraçada do que a outra. Dia desses, vi um cartaz, junto ao caixa de uma padaria da cidade, com essa impagável figura aprontando uma de suas tantas ursadas (que ele garantia serem gestos de amizade), dizendo aos fregueses: “Fiado só na padaria do lado”.
Não sei se levado pela subjetividade (é provável) identifiquei no meu inconfidente interlocutor traços físicos do célebre personagem de Péricles. Aprendi, de forma dolorosa, que não se tratava de “meu amigo”, mas de um genuíno “amigo da onça”. Neste caso, sem dúvida, prefiro “ordenhar um urso em cada café da manhã” a ter amizades deste tipo. E quem não prefere?

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