Tuesday, May 23, 2006

Nosso lado Wong


Pedro J. Bondaczuk


O homem – embora busque, no correr de sua curta vida, estabelecer uma diferenciação em relação aos semelhantes, para marcar sua presença como ímpar e para impor seu "eu" – não tem, a rigor, individualidade. Pode parecer paradoxal, quando se sabe que nenhum indivíduo é exatamente igual a outro, nem mesmo os chamados gêmeos univitelinos. As diferenças, contudo, são incidentais. Estão em detalhes: físicos, psicológicos ou morais, entre outros. Cada pessoa é uma reprodução, em termos de raciocínio, de percepção do mundo e de reação a estímulos, dos ancestrais. Agregada à nossa memória individual temos a coletiva. Possuímos desejos, sensações e emoções que milhares, quiçá milhões já tiveram algum dia, em algum lugar.

Todos temos, dentro de nós, convivendo (nem sempre harmoniosamente) múltiplas personalidades, cada qual diferente da auto-imagem que procuramos passar ao próximo no convívio social. Há nas artes, e mais especificamente em literatura, o caso do escritor Fernando Pessoa, que levou ao extremo essa multiplicidade, com seus heterônimos. Propôs-se a ser "vários", com estilos, temas e até nomes diferentes, ao ponto de no início da carreira ser confundido com muitas pessoas. Não se concebia que uma obra tão heterogênea saísse de uma única cabeça. Mas saiu.

Mário Quintana, no livro "Sapato florido", aborda esse tema de forma saborosa em um texto intitulado "O estranho caso de mister Wong". Escreve: "Além do controlado Dr. Jekyll e do desrrecalcado Mister Hyde (em referência ao personagem de dupla personalidade de Robert Louis Stevenson em "O médico e o monstro"), há também um chinês dentro de nós: Mister Wong. Nem bom, nem mau: gratuito. Entremos, por exemplo, neste teatro. Tomemos este camarote. Pois bem, enquanto o Dr. Jekyll, muito compenetrado, é todo ouvidos, e Mister Hyde arrisca o olho e a alma no decote da senhora vizinha, o nosso Mister Wong, descansadamente, põe-se a contar carecas na platéia...Outros exemplos? Procure-os o senhor em si mesmo, agora mesmo. Não perca tempo. Cultive o seu Mister Wong!"

Sequer é necessária a exortação. Todos damos espaço, em vários momentos de cada dia, ao inconseqüente chinês que trazemos dentro de nós, sem que nos apercebamos ou admitamos. A maior parte do nosso lazer no que consiste? E as coleções, seja lá do que for (caixas de fósforo, maços de cigarros vazios, selos, latas de cerveja, etc.), não significam o nosso Mister Wong em ação? Em um engarrafamento de trânsito, rotina em qualquer grande cidade, enquanto o Dr. Jekyll procura estudar caminhos alternativos, e Mister Hyde tem ímpetos de passar por cima do "flanelinha" que lhe lambuza o pára-brisas, o distraído chinês conta as placas dos carros vindos de outras localidades. Não é uma ação boa e nem ruim. É inócua. É gratuita. É desnecessária. É inconseqüente.

Mesmo que não nos apercebamos, é esse o nosso lado mais apreciado pelos que nos cercam, que inconscientemente se identificam como também sendo os seus. No entanto, por vaidade, presunção ou tolice, procuramos escondê-lo ou pelo menos disfarçá-lo ou inibi-lo. Somos, sobretudo, ambíguos. No fundo sabemos que nossa aparente seriedade nos confere um aspecto ridículo. No entanto, teimamos em conservá-la como fachada. Gilberto de Mello Kujawski, em um artigo publicado no "Caderno de Sábado" do "Jornal da Tarde", escreveu a respeito: "A condição humana se edifica sob o signo da ambigüidade. O homem não tem identidade. Mas seria caso de indagar se a ambigüidade não representa no homem o que ele tem de divino. Porque os deuses, tampouco, têm identidade".

Somos pessoas do nosso tempo e de nossa comunidade. Podemos adquirir até relativa notoriedade, não importa por qual razão, em nosso âmbito restrito. No plano mundial, pouquíssimos conseguem. Destes, menos ainda logram sobreviver a, digamos, uma década após sua morte. Aparência não conta, já que muda de um ano para o outro, quando não diariamente. Nome? Menos ainda. Não serve para caracterizar uma identidade. Somos incapazes de saber, entre nossos parentes próximos (e mais ainda remotos), quantos indivíduos se chamaram exatamente como nós. E até entre os que não possuem o mínimo parentesco. No Brasil há uma infinidade de pessoas com o nome José da Silva, entre outros. Na impossibilidade de estabelecer uma genuína identidade, que tal cultivarmos nosso lado moleque, nem bom e nem mau, mas só gratuito: o nosso Mister Wong?!

1 comment:

Anonymous said...

Olá,amigo Pedro.
Acredito que a maioria de nós tenhamos uma ou mais personalidades
encerradas no fundo da alma.
No meu caso,costumo dizer que são duas. Chamo-as pelos nomes de Mr Contido e Sr Afoito.
Um abração. ( do Amauri)