Monday, May 22, 2006
Pela vidraça
A poesia, para ser válida e gerar os efeitos pretendidos, tem que ser uma coisa viva. Precisa pulsar, ser ágil, nervosa, vibrante. Manoel Bandeira escreveu acerca da sua forma de expressão:
“Meu verso é sangue. Volúpia ardente.
Tristeza esparsa...remorso vão
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
cai, gota a gota, do coração”.
Assim são os poemas do novo livro do amigo e acadêmico Uassyr Martineli, Pela Vidraça. A obra é a 48ª das publicações da Academia Campinense de Letras e vem em boa hora, num momento atípico da vida nacional, caracterizado pela violência, pela fome e pela angústia.
O volume todo transpira poesia, que escorre por suas páginas, se espalha pelas mãos, penetra pelos poros e vai fundo ao coração. Produz um impacto, leva a pensar, mas é sobretudo sentimento. Logo nos primeiros versos, do poema que abre o livro e lhe dá título, “Pela Vidraça”, o leitor é convidado, sem cerimônia, a fazer um passeio pela alma de um mago, acostumado a jogar, com rara maestria, com nossos sentimentos:
“Pela vidraça
da casa de uma janela só (na sala de pouca luz)
entraram
--- abafados, surdos – os gritos
e os risos
das crianças a brincar
com o último pedaço de tarde”.
Lindos versos. Líricos, lúdicos e ao mesmo tempo sérios.
E o livro todo, poema a poema, página a página, mantém o mesmo ritmo, sem jogos de palavras cifradas e nem trucagens típicas de quem quer se passar por poeta. Uassyr não precisa disso. Pelo contrário, tem o mérito da clareza, da lapidação do verso, que expurgado de impurezas vocabulares, brilha com a intensidade de um diamante do mais elevado quilate. Exagero? Longe disso!
O leitor mesmo pode comprovar o que afirmamos ao ler, por exemplo, “Pássaros”:
“Dois pássaros voaram no céu
mas o pássaro de alumínio
subiu mais alto
e foi mais longe,
porque ele era mais forte
--- era de alumínio
era de ferro
e era de aço.
Um dia
o pássaro que não era de alumínio
virou luz
e voou então mais alto
e voou então mais longe
porque ele era mais forte
do que o pássaro de alumínio,
--- não era de alumínio
não era de ferro
e nem era de aço”.
Isto é poesia!
E os temas? Pode haver algo mais oportuno, nos dias que correm, do que esta “Ladainha da Fome”?:
“Com a mão firme
com a caneta de tinta preta
seca
porosa
em letra de forma
atestou
causa mortis: fome.
Foi
por isso
repreendido
(mas continuou
a atestar
causa mortis: fome
causa mortis: fome
causa mortis: fome).
(Com a mão firme
com a caneta de tinta preta
seca
porosa
em letra de forma
causa mortis: fome).
Foi
por isso
demitido
da Secretaria Municipal de Saúde
da Secretaria Estadual de Saúde
do Ministério Federal de Saúde
causa mortis: fome
com a mão firme
com a caneta de tinta preta
seca
porosa
em letra de forma
causa mortis: fome.
Ave Maria
cheia de graça
causa mortis: fome
causa mortis: fome”.
Paulo Mendes Campos escreveu, numa de suas últimas crônicas, que “o poeta não se serve das palavras, é seu servidor”. Assim é este mágico que retém em versos um pôr-do-sol, eterniza instantes fugazes, transformados em jóias, colhe lírios da mais imaculada brancura mesmo nos pântanos mais lodosos e assustadores das paixões e dos sentimentos do bicho homem. Pela Vidraça é um livro imperdível para os amantes da poesia. E quem não é?
(Capítulo do livro “Por uma nova utopia”, Pedro J. Bondaczuk, páginas 95 e 99, 1ª edição – 5 mil exemplares – fevereiro de 1998 – Editora M – São Paulo).
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