Tuesday, May 02, 2006
Só a vida não basta
Pedro J. Bondaczuk
A vida, em sua forma animal, com as contradições do dia-a-dia e a luta pura e simples pela sobrevivência, sozinha, não nos basta. Não, pelo menos, para os que pretendem explorar o máximo das potencialidades do cérebro e desvendar as fronteiras do irreal. Há muito mais que podemos fazer que não se limite à mera absorção da educação formal que nos dão, com o objetivo de nos formar para o exercício de alguma profissão (ou função), que por sua vez se destina a nos possibilitar a obtenção de recursos (e os gerar para a "sociedade"), que por seu turno financiem nossa alimentação, habitação, vestuário e tudo o mais que mantenha nosso corpo íntegro e saudável. Somos escravos do "sistema".
Não temos nenhuma autonomia. Ou nos curvamos às expectativas e finalidades alheias que nos são impostas, ou nos marginalizamos (ou seremos marginalizados). Isto tem lá a sua lógica e importância. Mas não deve ser tudo para o homem que queira justificar sua racionalidade. Não podemos aceitar passivamente o papel que nos impõem. Podemos até exercê-lo, mas com consciência, abrindo espaços para a nossa individualidade. Compete-nos usar o poderoso instrumento com que a natureza nos dotou e sermos mais do que meras peças de uma engrenagem que já existia antes de nascermos e continuará existindo depois que viermos a morrer. Devemos ser, de fato, "homens".
Daí concordar com Fernando Pessoa, quando afirma: "A Literatura, como toda a arte, é uma confissão de que a vida não basta. Trilhar a obra literária sobre as próprias formas do que não basta é ser impotente para substituir a vida". É verdade que o homem é limitado demais para explorar o ambiente físico. Sequer conhece adequadamente seu domo cósmico: a Terra. Fora dela, esteve algum par de vezes, mas aqui perto, em seu satélite natural, a Lua e só. No entanto, seu "domicílio" universal, que lhe parece tão monstruosamente extenso, é parte ínfima de uma galáxia, provavelmente de porte médio, que é uma em bilhões de tantas outras. É possível que haja não um único universo, como sempre se supôs, mas uma infinidade deles. Fisicamente, portanto, a possibilidade de exploração é limitadíssima, quase nula.
O mesmo não ocorre, no entanto, em relação àquilo que a imaginação pode explorar. A fantasia também pode ser ilimitada. Basta que tenhamos disposição e coragem para afrontar essa imensidão. Criar, criar e criar é o desafio que se impõe ao homem. Não objetos, posto que, dada sua limitação física, suas possibilidades de criação nesse campo são mínimas. Mas no plano espiritual se transformam em infinitas. É apenas com esse exercício criativo, permanente, constante, exaustivo, que o homem exerce, de fato, sua humanidade.
A preservação da vida física não é prerrogativa humana. É resquício do instinto de sobrevivência que todo o ser vivente possui, animal ou vegetal. Trata-se, pois, de ato semiconsciente, se tanto. Ademais, é um exercício inútil, face à realidade da morte. Devemos, sim, buscar nossa sobrevivência, mas também em um outro terreno que não o da matéria. É nosso dever registrar que um dia existimos, pensamos, sentimos, tivemos medo, raiva, dor e saudade, mas fizemos dessa traumática "matéria-prima" um universo de sonhos e de fantasia.
Para tanto, não podemos nunca mentir para nós mesmos. Fernando Pessoa escreveu que "a sinceridade é o grande obstáculo que o artista tem que vencer. Só uma longa disciplina, uma aprendizagem de não sentir senão literariamente as coisas, podem levar o espírito a esta culminância". Mas não podemos adiar para o ano seguinte, o mês seguinte, o dia seguinte, a hora seguinte, o minuto seguinte esse exercício, essa autodisciplina, essa empreitada. Nosso tempo, em relação àquele universal, é restritíssimo. A morte não manda recado e nem avisa quando vai chegar. O presente segundo pode ser o nosso derradeiro.
Daí a necessidade de utilizarmos cada instante da nossa vida da maneira mais racional e proveitosa em termos de exercício da nossa humanidade. É possível que tudo o que fizermos fique perdido, acabe não valendo nada e que sejamos absolutamente esquecidos passados um, dois, dez, vinte, cinqüenta ou cem anos após nossa extinção. Esse é um risco que sempre teremos que correr. É o preço que pagamos pela nossa condição humana, fragílima, efêmera, perecível.
Mas compete-nos tentar. Tentar sem desânimo ou trégua. Compete-nos sonhar. Sonhar a não mais poder. Compete-nos agir. Agir até o limite das nossas resistências. Compete-nos criar. Criar universos de fantasia, embora com a pobre matéria-prima da realidade. Compete-nos avançar para além da vida, em um terreno que não seja o da morte. Jorge Luís Borges escreveu a esse propósito: "Fomos feitos para a arte: fomos feitos para a memória e a poesia: ou fomos feitos, quem sabe, para o esquecimento. Mal algo sobra; e esse algo é a história ou a poesia, que não são essencialmente distintas".
Somos desafiados a cada instante a nos definir: o que somos, o que queremos, para o quê viemos a este mundo louco, participando dessa sociedade insana? Borges revela que "cada um de nós se define para sempre, num único instante de sua vida – instante esse em que cada qual se encontra para sempre consigo mesmo". Alguns adiam "sine die" esse encontro, em geral traumático. Outros jamais o promovem. Mas os que têm a coragem de afrontar seus fantasmas e demônios interiores concluem, invariavelmente: "apenas a vida não nos basta..."
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