Tuesday, May 09, 2006

Atos falhos


Pedro J. Bondaczuk


O erro é a coisa mais democrática que existe no mundo, disse um pensador (cujo nome não me recordo). Alguns são cometidos por falta de conhecimento, outros por mau planejamento, outros ainda, por desleixo ou por falta de disciplina, etc.etc.etc. Os motivos variam. Mas há os chamados "atos falhos". Ou seja, aqueles cometidos quando a pessoa tem absoluta convicção de estar fazendo as coisas de maneira certa, mas não está.

Por uma dessas traições do subconsciente, faz uma inadequada associação de idéias, com resultados quase sempre desastrosos ou, no mínimo, constrangedores. Em minha função de editor, trabalhando contra o relógio e com escassa margem de tempo para raciocinar, às vezes dou desses “escorregões” (felizmente não com muita freqüência). Quase todos dão, uns quase que diariamente (por isso duram pouco no emprego), outros de vez em quando, mas jornalistas, radialistas ou âncoras de televisão nunca estão livres desse vexame.

Como meu trabalho é público, passa pelo crivo diário de milhares de leitores. E, quando há algum erro, qualquer que seja, este imediatamente ressalta. Não há como esconder. E o constrangimento é enorme. No dia seguinte..., o ramal telefônico da editoria fica literalmente “entupido” de chamadas, de pessoas ávidas por serem as primeiras a terem notado a “mancada”. No entanto, para elogiar...Bem, deixa pra lá!.

Lembro-me de um caso, ocorrido há sete anos (parece conta de mentiroso), quando eu acumulava as editorias de “Geral”, “Brasil” e “Internacional” do Correio Popular de Campinas, coisa comum nas empresas, mesmo as de portes grande e médio, em épocas de contenção de despesas. Ou seja, quase sempre! O editor aceita a imposição (que lhe dizem ser “temporária”, a título de “colaboração”, mas que acaba se perpetuando), por razões óbvias. Afinal, empregos não estão sobrando por aí, muito menos para jornalistas.

A notícia era sobre a morte do ator, cantor, bailarino e diretor de cinema Gene Kelly. O filme que o celebrizou, entre tantos que fez, foi "Cantando na Chuva". Trata-se, como o leitor certamente está ciente, de um clássico de Hollywood. Assisti-o pelo menos vinte vezes, sempre com o mesmo interesse, já que é uma verdadeira obra-prima da Sétima Arte. Tenho-o em casa, gravado em vídeo, e de vez em quando torno a assisti-lo.

Pois bem, quando Gene Kelly morreu, eu quis fazer uma manchete diferente. Em vez de citar seu nome, como todos fazem em caso de notícias de morte, pensei em mencionar o trabalho que marcou a sua trajetória na vida artística já no título da matéria. Lembro-me que foi em uma sexta-feira, dia bastante atribulado em qualquer redação de jornal, quando as editorias adiantam a edição do domingo, que é complementada por uma equipe de plantão no sábado, com deadline restritíssimo (às 14 horas, sem nem mais um minuto!).

Minha edição estava atrasada na ocasião e já havia cobranças para que eu liberasse a página. Na hora da titulação, não tive dúvidas. Manchetei: "Morre o bailarino de 'Dançando na chuva'", num enorme corpo 72, em negrito. Claro que estava errado! Fui traído por um ato falho, em uma informação que conhecia de sobejo, em cada detalhe.

Como praticamente todos os jornais eliminaram as Revisões, o título errado transitou por vários e vários setores do jornal, sem que ninguém o notasse (e se alguém o notou, não quis colaborar com o editor) e alertasse quem o perpetrou, para que fizesse a devida correção.

Como se tratava de um dançarino, aquele que ao lado de Fred Astaire popularizou no mundo todo a dança não clássica, o subconsciente se deixou levar por isso. Bastava que eu me lembrasse da trilha sonora, "Singing in the rain", para que colocasse o nome correto do filme em minha manchete. E este, sem dúvida, é "Cantando na chuva". Foi uma das grandes frustrações da minha carreira de editor, embora cada erro seja como que uma ferida no ego e, conseqüentemente, no prestígio.

Na segunda-feira, na crítica interna do jornal, que todos os editores eram obrigados a fazer, lá estava o meu erro, sendo execrado e servindo de motivo de gozações dos demais companheiros de função, apesar de suas respectivas editorias conterem erros até mais graves. Tive, constrangidíssimo (sem dúvida) que publicar, em local bem visível da editoria, o clássico “erramos”, como se os leitores não tivessem notado! Mas tanto notaram, que era impossível de trabalhar nesse dia, a não ser com o telefone fora do gancho, tantos eram os telefonemas para o meu ramal. Ossos do ofício!

Mas não é somente na vida profissional que os atos falhos acontecem. Na pessoal ocorrem até com maior freqüência. Tempos atrás, quando morava em São Caetano do Sul, estava à procura de emprego para suplementar o salário que recebia como radialista. Como trabalhava na madrugada, tinha todo o período da tarde livre e achava desperdício não preencher esse tempo com uma atividade remunerada.

Conversando com o pessoal da vila onde morava, um amigo muito chegado, conhecido no bairro pelo apelido de “Zé Gordo” (que, estranhamente, era magérrimo), disse que tinha um conhecido que ocupava um alto cargo em uma empresa, que me poderia arranjar o trabalho que eu estava procurando. Conversa vai, conversa vem, o amigo descreveu-me o sujeito com o qual eu deveria falar.

Disse, entre outras coisas, que o tal conhecido seu tinha os dentes saltados para fora e que se sentia complexado por isso. Era chamado (pelas costas, evidentemente) de "Dentinho", apelido que abominava e que o tirava do sério, o deixando possesso. Lembro-me que o Zé Gordo ainda me recomendou: "Vê se não o chama dessa forma, pois além de não conseguir o emprego, é capaz de você receber ainda algumas bolachas".

"Claro que não! Não sou burro!", respondi-lhe irritado. No dia combinado, apareci na firma, um escritório de representações, à procura do tal sujeito. O guarda encaminhou-me diretamente à sua sala. Entrei, sentei-me, esperei que desligasse o telefone e me desse atenção. Assim que isso aconteceu, entreguei-lhe o bilhete do Zé Gordo. Mas não conseguia tirar os olhos da sua boca. Mais especificamente de seus dentes saltados.

Seu nome era Dirceu. Não me lembrava na hora do sobrenome, mas não importava. O sujeito fez-me uma série de perguntas sobre o que eu sabia fazer, além de locução de rádio, quanto queria ganhar e coisas desse tipo. Saiu por duas vezes da sala com meus documentos e, por fim, disse que eu estava admitido.

Recomendou que passasse naquele mesmo dia – era uma quarta-feira – no Departamento de Pessoal e começasse a trabalhar já na segunda-feira. Fiquei eufórico. Precisava daquele trabalho como ninguém, embora não quisesse largar o rádio. O horário combinado era o ideal. Permitia-me conciliar as duas atividades. Um tanto quanto emocionado por haver conseguido o que queria, levantei-me, todo sorridente, estendi-lhe a mão e sapequei: "Muito obrigado senhor 'Dentinho'". E saí de imediato. Quando percebi o que havia dito, já era tarde. Ainda pude ouvir, à distância, já na portaria da empresa: "Dentinho é a p...q...p..."...Isto é o que se chama "ato falho"!!!.

1 comment:

Anonymous said...

Muito interessante sua reflexão sobre o ato falho.
Essas expressões psicológicas, aparecem no inconsciente como retorno do desejo recalcado que irrompe, como uma espécie de tendência perturbadora que contraria a intenção consciente do sujeito. A produção de um ato falho, é resultado de uma intenção sofrida por um recalcamento.
Um abraço.