Paixão platônica (ou mediúnica)?
Pedro J. Bondaczuk
Os fatos que inspiraram o romance “Soledad no Recife”, de Urariano Mota (Boitempo Editorial) foram reais. Realmente aconteceram, e numa época sombria e turbulenta da história brasileira. O episódio em questão ficou conhecido nos meios jornalísticos e nos anais da História como “Massacre da chácara São Bento”. De nada adiantaram os esforços dos integrantes e simpatizantes da ditadura para adulterarem o que ocorreu, dando a entender que se tratou de um tiroteio e que os assassinos agiram de forma legal e em legítima defesa. Não foi assim que as coisas ocorreram.
Os principais personagens, pelo menos os centrais da trama – a paraguaia Soledad Barrett Viedma e seu companheiro, Anselmo dos Santos, ex-cabo da Marinha, cujo codinome na guerrilha era Daniel – igualmente são realíssimos, de carne e osso. Não são, pois, produtos de elucubrações literárias do autor. Com esses ingredientes, aparentemente (e de fato) áridos, Urariano construiu uma história de amor, ódio, ciúmes, traição, idealismo, heroísmo e todos os demais ingredientes imagináveis para um romance marcante e memorável. Adiante-se que o autor jamais esteve cara a cara com Soledad. Não a conheceu pessoalmente e não conversou com ela. Mas amou-a assim mesmo. Identificou-se com seu idealismo. Ambos se irmanaram nele.
O livro rescende, todo ele, a paixão, da primeira à última página. É fruto dela. Seu autor redigiu-o apaixonadamente. Por conseqüência, sua leitura é apaixonante. O escritor pernambucano conseguiu a façanha, sumamente complexa, de tornar sublime e bela uma história que sob vários aspectos é, na verdade, das mais sórdidas. O livro é, todo ele, um imenso poema, posto que em prosa. Mas, para que vocês entendam o enredo, julgo oportuno trazer-lhes algumas informações básicas sobre os fatos que compõem o pano de fundo do romance e sobre as ações e reações dos principais personagens.
Em 8 de janeiro de 1973, sete jovens idealistas, militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que tentavam instalar uma célula de resistência à ditadura no Recife, foram barbaramente assassinados, após terríveis sessões de tortura. Uma das vítimas era Soledad, então com 28 anos (completados dois dias antes, cuja festa Urariano narra no romance) e grávida de quatro meses do suposto chefe do grupo (na verdade o delator), o tal do Cabo Anselmo, sobre o qual prometo discorrer com mais vagar em outro texto.
Tudo aconteceu em um esconderijo do grupo, numa chácara do loteamento de São Bento. Esta situava-se no município de Paulista, região do Grande Recife. Foram mortos, na oportunidade, também Eudaldo Gomes da Silva, Pauline Reichstul, Evaldo Luís Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques e José Manuel da Silva. A operação foi comandada por alguém de triste memória para os amantes da justiça e da liberdade, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS), órgão incumbido de fazer o trabalho sujo da repressão.
Os cadáveres dos jovens rebeldes foram crivados de balas. Não contentes com isso, visando simular que houvera combate, os autores da chacina destruíram a casa da chácara, lançando, sobre ela, várias granadas. À imprensa, os autores do massacre disseram que naquele local estaria sendo realizado um suposto congresso da VPR. Claro que não estava. Argumentaram que mataram os militantes em legítima defesa, em um tiroteio. Claro que não houve nenhum combate. As vítimas, em momento algum, tiveram a menor chance de defesa. Foram torturadas até a morte e depois crivadas de balas.
Mas a figura central desse episódio era Soledad Barrett Viedma. Só a série de coincidências de datas, que cercam essa magnífica figura, merece todo um capítulo de um livro. Ela nasceu em 6 de janeiro de 1945. Se nascesse um dia depois, sua data de nascimento coincidiria com a do avô, o escritor Rafael Barrett, de ascendência espanhola. E Soledad morreu num 8 de janeiro, dois dias depois do 28º aniversário, entregue covardemente aos algozes pelo próprio homem de quem carregava na barriga um filho de quatro meses. Ressalte-se que se tratava de mulher bela, belíssima. E embriagada de ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Mas não apenas conceitualmente, ou retoricamente, como tantos outros jovens da sua geração, e da atual, mas em sentido prático, como ativista, como militante das causas de libertação da opressão.
Antes de ir para o Recife, Soledad havia sido casada com outro brasileiro, com José Maria Ferreira de Araújo, desaparecido e certamente assassinado pela ditadura. Foi por causa dele que veio para o Brasil. Antes, havia vivido na Argentina e no Uruguai, países que também estavam sob ditaduras militares. Em solo uruguaio havia vivido um drama que quase lhe custou a vida. Tinha sido raptada por um grupo neonazista, defensor dos ditadores de plantão.
Colocada em um automóvel, ameaçada de todas as maneiras, seus raptores queriam obrigá-la a gritar palavras de ordem favoráveis às ditadura. Não conseguiram. Sob risco de ser morta, ela recusou-se a atender as exigências dos captores Em represália, eles gravaram, com uma navalha, em seu corpo, uma cruz suástica, símbolo do nazismo. Feito isso, abandonaram-na em um local ermo e escuro de Montevidéu, próximo ao zoológico de Vila Dolores. Pouco depois, conheceu José Maria. Ambos apaixonaram-se, casaram-se e tiveram uma filha, que reside, atualmente, no Estado de Santa Catarina. O marido regressou ao Brasil e nunca mais se soube dele. Um ano depois, Soledad tomou o mesmo rumo.
Cabo Anselmo era amigo (ou pelo menos dizia que era) de José Maria. Foi assim que conheceu Soledad e que ambos acabaram juntos, na guerrilha e na cama, na vida conjugal. Antes não o conhecesse. O que aconteceu na sequência, Urariano descreve com precisão (e, reitero, com paixão e verdade), posto que intercalando episódios fictícios que, se não aconteceram, bem que poderiam ter acontecido, aos reais.
Marco Albertim, em comentário que fez a propósito de “Soledad no Recife”, acentuou, com extrema precisão: “Um romance confessional, digressivo e pulsante; dir-se-ia um diário com registros não meramente factuais, mas com a obsessão de tornar o objeto principal da narração num personagem palpável. O autor Urariano Mota, ao escrever Soledad no Recife, resgatou-a de tal modo que conversou com ela, teve-a do lado, dormiu absorvendo o hálito paraguaio da moça que nunca foi dele, é agora, inda que morta, mais sua do que de quem a viu na intimidade do penhoar. Imaginou-a, ele, trouxe-a de volta como um cientista da palavra. Ele próprio o diz: ‘Eu quis – ambição de doido, já se vê – ter Soledad comigo, na minha frente. Seria algo como um médium na sessão espírita que invocasse seu espírito para tê-la de volta em toda a carne e concretude’. Voltarei oportunamente ao assunto.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
Os fatos que inspiraram o romance “Soledad no Recife”, de Urariano Mota (Boitempo Editorial) foram reais. Realmente aconteceram, e numa época sombria e turbulenta da história brasileira. O episódio em questão ficou conhecido nos meios jornalísticos e nos anais da História como “Massacre da chácara São Bento”. De nada adiantaram os esforços dos integrantes e simpatizantes da ditadura para adulterarem o que ocorreu, dando a entender que se tratou de um tiroteio e que os assassinos agiram de forma legal e em legítima defesa. Não foi assim que as coisas ocorreram.
Os principais personagens, pelo menos os centrais da trama – a paraguaia Soledad Barrett Viedma e seu companheiro, Anselmo dos Santos, ex-cabo da Marinha, cujo codinome na guerrilha era Daniel – igualmente são realíssimos, de carne e osso. Não são, pois, produtos de elucubrações literárias do autor. Com esses ingredientes, aparentemente (e de fato) áridos, Urariano construiu uma história de amor, ódio, ciúmes, traição, idealismo, heroísmo e todos os demais ingredientes imagináveis para um romance marcante e memorável. Adiante-se que o autor jamais esteve cara a cara com Soledad. Não a conheceu pessoalmente e não conversou com ela. Mas amou-a assim mesmo. Identificou-se com seu idealismo. Ambos se irmanaram nele.
O livro rescende, todo ele, a paixão, da primeira à última página. É fruto dela. Seu autor redigiu-o apaixonadamente. Por conseqüência, sua leitura é apaixonante. O escritor pernambucano conseguiu a façanha, sumamente complexa, de tornar sublime e bela uma história que sob vários aspectos é, na verdade, das mais sórdidas. O livro é, todo ele, um imenso poema, posto que em prosa. Mas, para que vocês entendam o enredo, julgo oportuno trazer-lhes algumas informações básicas sobre os fatos que compõem o pano de fundo do romance e sobre as ações e reações dos principais personagens.
Em 8 de janeiro de 1973, sete jovens idealistas, militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que tentavam instalar uma célula de resistência à ditadura no Recife, foram barbaramente assassinados, após terríveis sessões de tortura. Uma das vítimas era Soledad, então com 28 anos (completados dois dias antes, cuja festa Urariano narra no romance) e grávida de quatro meses do suposto chefe do grupo (na verdade o delator), o tal do Cabo Anselmo, sobre o qual prometo discorrer com mais vagar em outro texto.
Tudo aconteceu em um esconderijo do grupo, numa chácara do loteamento de São Bento. Esta situava-se no município de Paulista, região do Grande Recife. Foram mortos, na oportunidade, também Eudaldo Gomes da Silva, Pauline Reichstul, Evaldo Luís Ferreira de Souza, Jarbas Pereira Marques e José Manuel da Silva. A operação foi comandada por alguém de triste memória para os amantes da justiça e da liberdade, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS), órgão incumbido de fazer o trabalho sujo da repressão.
Os cadáveres dos jovens rebeldes foram crivados de balas. Não contentes com isso, visando simular que houvera combate, os autores da chacina destruíram a casa da chácara, lançando, sobre ela, várias granadas. À imprensa, os autores do massacre disseram que naquele local estaria sendo realizado um suposto congresso da VPR. Claro que não estava. Argumentaram que mataram os militantes em legítima defesa, em um tiroteio. Claro que não houve nenhum combate. As vítimas, em momento algum, tiveram a menor chance de defesa. Foram torturadas até a morte e depois crivadas de balas.
Mas a figura central desse episódio era Soledad Barrett Viedma. Só a série de coincidências de datas, que cercam essa magnífica figura, merece todo um capítulo de um livro. Ela nasceu em 6 de janeiro de 1945. Se nascesse um dia depois, sua data de nascimento coincidiria com a do avô, o escritor Rafael Barrett, de ascendência espanhola. E Soledad morreu num 8 de janeiro, dois dias depois do 28º aniversário, entregue covardemente aos algozes pelo próprio homem de quem carregava na barriga um filho de quatro meses. Ressalte-se que se tratava de mulher bela, belíssima. E embriagada de ideais de igualdade, liberdade e fraternidade. Mas não apenas conceitualmente, ou retoricamente, como tantos outros jovens da sua geração, e da atual, mas em sentido prático, como ativista, como militante das causas de libertação da opressão.
Antes de ir para o Recife, Soledad havia sido casada com outro brasileiro, com José Maria Ferreira de Araújo, desaparecido e certamente assassinado pela ditadura. Foi por causa dele que veio para o Brasil. Antes, havia vivido na Argentina e no Uruguai, países que também estavam sob ditaduras militares. Em solo uruguaio havia vivido um drama que quase lhe custou a vida. Tinha sido raptada por um grupo neonazista, defensor dos ditadores de plantão.
Colocada em um automóvel, ameaçada de todas as maneiras, seus raptores queriam obrigá-la a gritar palavras de ordem favoráveis às ditadura. Não conseguiram. Sob risco de ser morta, ela recusou-se a atender as exigências dos captores Em represália, eles gravaram, com uma navalha, em seu corpo, uma cruz suástica, símbolo do nazismo. Feito isso, abandonaram-na em um local ermo e escuro de Montevidéu, próximo ao zoológico de Vila Dolores. Pouco depois, conheceu José Maria. Ambos apaixonaram-se, casaram-se e tiveram uma filha, que reside, atualmente, no Estado de Santa Catarina. O marido regressou ao Brasil e nunca mais se soube dele. Um ano depois, Soledad tomou o mesmo rumo.
Cabo Anselmo era amigo (ou pelo menos dizia que era) de José Maria. Foi assim que conheceu Soledad e que ambos acabaram juntos, na guerrilha e na cama, na vida conjugal. Antes não o conhecesse. O que aconteceu na sequência, Urariano descreve com precisão (e, reitero, com paixão e verdade), posto que intercalando episódios fictícios que, se não aconteceram, bem que poderiam ter acontecido, aos reais.
Marco Albertim, em comentário que fez a propósito de “Soledad no Recife”, acentuou, com extrema precisão: “Um romance confessional, digressivo e pulsante; dir-se-ia um diário com registros não meramente factuais, mas com a obsessão de tornar o objeto principal da narração num personagem palpável. O autor Urariano Mota, ao escrever Soledad no Recife, resgatou-a de tal modo que conversou com ela, teve-a do lado, dormiu absorvendo o hálito paraguaio da moça que nunca foi dele, é agora, inda que morta, mais sua do que de quem a viu na intimidade do penhoar. Imaginou-a, ele, trouxe-a de volta como um cientista da palavra. Ele próprio o diz: ‘Eu quis – ambição de doido, já se vê – ter Soledad comigo, na minha frente. Seria algo como um médium na sessão espírita que invocasse seu espírito para tê-la de volta em toda a carne e concretude’. Voltarei oportunamente ao assunto.
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
No comments:
Post a Comment