Friday, January 20, 2012







Momento dramático da sentença


Pedro J. Bondaczuk


O romance “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, além de se tratar de uma história muito bem urdida, e desenvolvida, pelo autor, traz uma série de importantes reflexões. Convido o leitor e fazer algumas delas comigo. Bom seria que o livro fosse lido (e refletido) por todos os personagens do aparato Judiciário. Ou seja, por todos os encarregados por estabelecer e ministrar justiça em dada sociedade, desde o legislador (ao qual compete estabelecer normas justas, universais e iguais para todos), a advogados, promotores, juízes, membros do júri (quando for o caso), e até (por que não?) aos réus e ao público em geral (já que qualquer um de nós, dependendo das circunstâncias, pode infringir leis e ter que responder pela infração).
Apesar de todos os momentos de um processo – desde o inquérito policial ao desfecho de um julgamento – serem (óbvio) importantes, o culminante, o mais dramático, é o da sentença. A decisão do magistrado, condenando ou absolvendo o acusado de delinqüir, tende a mudar, por completo, uma vida, definindo sua morte social (no primeiro caso) ou justificando e dando chancela à sua conduta (no segundo).
Hugo faz a seguinte reflexão a esse propósito: “Nossa civilização tem momentos terríveis: são os momentos em que uma sentença anuncia um naufrágio. Que minuto fúnebre este em que a sociedade se afasta e relega ao mais completo abandono um ser que raciocina”. Pior quando a condenação é injusta. Quando anos mais tarde, a defesa do réu, que parecia fantasiosa durante o julgamento, se revela verdadeira, face a novas provas coligidas ou, principalmente, quando o verdadeiro culpado é descoberto ou confessa o delito.
Há inúmeros casos do tipo na coleção dos grandes erros judiciários. O mais conhecido deles, citado, amiúde, sempre que o tema vem à baila, é o caso dos irmãos Naves. A descoberta de que não houve o assassinato pelo qual foram condenados, com o aparecimento, duas décadas depois, da suposta vítima, porém, pelo menos para um deles (que morreu na prisão) foi tardia. E mesmo o sobrevivente, inocentado, a despeito de haver sido indenizado, arcou com anos e anos de sofrimento, sem nada dever. O tempo perdido de sua vida, portanto, ninguém pôde (e nem poderia) compensar.
No romance “Os Miseráveis”, Victor Hugo, valendo-se das peripécias do personagem Jean Valjean, nos leva a refletir sobre as tentativas de justificação do infrator que comete algum delito. Sempre temos explicações para nossos atos, por mais condenáveis e onerosos que sejam. Ocorre que algumas justificativas são tão sem fundamento, que descambam para o ridículo.
Todas as infrações às leis são justificáveis? Atrevo-me a responder que algumas até podem ser, mas não devem eximir o infrator de culpa. O que o magistrado pode fazer é levá-las em consideração, no momento de exarar a sentença (aliás, é o que sempre deve fazer), para que não venha a punir com excessivo rigor algum delito de pequena monta e não atenue nos de extrema gravidade (crimes hediondos). Este é o seu papel, ou seja, o de ministrar a justiça, de arbitrar as causas, de decidir, judiciosamente, quem errou e quanto.
As infrações, quaisquer que sejam, portanto, não se justificam (e todas as pessoas que raciocinam sabem disso), mesmo que as leis infringidas sejam notoriamente injustas. Se este for o caso, cabe à sociedade se mobilizar para que estas sejam revogadas. Mas, enquanto vigirem, têm que ser acatadas por “todos”. Os infratores podem, no máximo, apresentar atenuantes que, reitero, têm que ser levadas sempre em consideração pelo juiz em sua tomada de decisão.
A esse propósito, Hugo relata a seguinte situação, que suscita seriíssimas reflexões: “(Valjean) começou por se julgar a si mesmo. Reconheceu não ser um inocente injustamente punido. Concordou que havia cometido uma ação desesperada e reprovável, que, talvez, se tivesse pedido, não lhe haveria de recusar o que roubara, que, em último caso deveria confiar nas caridade ou no próprio trabalho, que afinal, não era razão suficiente afirmar-se que não se pode esperar quando se tem fome”.
Será?! É possível confiar na bondade, solidariedade ou, sei lá, piedade quando se está em situação desesperadora, como a que Valjean estava? Tenho minhas dúvidas. O personagem de Hugo, porém, concluiu que não estava, de todo, errado, ao furtar o pão para se alimentar e prover a família de comida.
As estruturas sociais então vigentes (primeira metade do século XIX e ainda hoje, mais do que nunca, em pleno século XXI) é que se têm mostrado sumamente injustas. E as leis que regulam a sociedade acompanham essa injustiça e deveriam ser revistas, e muitas delas, revogadas. Reitero, porém, que enquanto estiverem em vigência, têm que ser acatadas. Mas por todos, e não apenas pelos deserdados da fortuna, como via de regra ocorre.
Hugo faz, através de Valjean, o seguinte questionamento a propósito: “Nessa história toda, o erro era só dele? Era igualmente grave o fato de ele, operário, não ter trabalho e não ter pão”. Quem puniria a sociedade por sua omissão? Como? A quem punir? Às autoridades constituídas, incapazes de gerir com imparcialidade e coerência o patrimônio comum? Aos legisladores, que elaboram leis injustas e iníquas, frustrando as expectativas de quem os elegeu para a tarefa? Sim, a quem punir pelas mazelas da sociedade?
Um ponto importante, tratado por Victor Hugo, no romance “Os Miseráveis”, foi aquele em que aborda a brutalidade do castigo, imposto pelo aparato de justiça, ao delinqüente, quando desproporcional à gravidade do delito. É o caso da doméstica, que tratei em um dos meus textos, encarcerada por um furto de valor irrisório, inferior a R$ 1, mantida presa por um longo tempo, no aguardo de julgamento.
Admitamos que ela infringiu a lei (e infringiu mesmo) e que, portanto, deveria se submeter às sanções da sociedade. Mas seria justo o castigo que lhe foi aplicado? Não se tratou de ostensivo abuso de poder? Não é necessário ser jurista e nem doutor em legislação para se concluir que sim. Houve nítido exagero na punição (e na do personagem Valjean, condenado a dez anos nas galés, por haver furtado, sem uso de violência, pão para alimentar a família).
Reitero que a minha visão do assunto (e a de Hugo), não é a do jurista, mas do escritor. Está, pois, despida dos ranços de tecnicismos, que podem ser, até, corretos do ponto de vista das processual, mas que carecem de lógica (e, por que não, de humanidade).
O romancista francês reflete, a propósito da dura e brutal sentença imposta a Valjean: “Depois da falta ter sido cometida e confessada, por acaso o castigo não foi por demais feroz e excessivo? Onde haveria mais abuso: da parte da lei, na pena, ou da parte do culpado, no crime? Não haveria excesso de peso em um dos pratos da balança, justamente naquele em que está a expiação?”. A resposta óbvia é sim!!!
É certo que o condenado, teoricamente, tem o direito de recorrer a instâncias superiores da justiça. Mas uma pessoa humilde, desempregada, não raro analfabeta, teria condições de contratar um bom advogado para cuidar desses recursos, num processo longo, demorado e, por isso, extremamente custoso? Claro que não! A desproporção de certos castigos, em relação ao delito cometido, é um abuso bastante comum. O magistrado, porém, tem que se conscientizar que está decidindo a vida de um ser humano, não de um animal irracional (o que já seria uma crueldade) ou cuidando do que fazer com um determinado objeto.
Hugo conclui da seguinte forma seu raciocínio sobre a brutalidade da pena, quando desproporcional à infração da lei: “Por que o exagero da pena não apagava completamente o crime, quase que invertendo a situação, substituindo a falta do delinqüente pela da justiça, fazendo do culpado a vítima, do devedor credor, pondo definitivamente o direito justamente do lado de quem cometeu o furto?”.
Observo que o romancista, a despeito de não ser jurista, tinha propriedade para abordar o tema. Afinal, Victor Hugo foi um dos mais lúcidos e humanos legisladores franceses, já que foi senador por um bom tempo, e dos mais populares de seu país.
O eminente jurista italiano do século XVIII, Cesare Beccaria, em seu clássico “Do delito e das penas”, assegura que a pena imposta a quem infringe a lei não é uma vingança da sociedade contra o infrator. É uma oportunidade de “reeducação” dele, para que possa retornar ao convívio social regenerado e ser, dessa forma, útil à família e ao grupo que integra, e não mais o elemento nocivo, passivo de segregação, que era antes da condenação.
Como doutrina, é um princípio maravilhoso e nobre. Mas... na prática, é assim que ocorre? Claro que não! As instituições penitenciárias, no mundo todo, são verdadeiros infernos na terra. Especialmente no Brasil (onde podemos falar com conhecimento de causa), são depósitos de pessoas, trancafiadas e submetidas a toda a sorte de vexames e sofrimentos. Encarcerado nessas pocilgas insalubres e superlotadas, o ser humano perde o resto de humanidade que, eventualmente, ainda lhe reste.
Torna-se, então, idéia fixa a fuga. E, se os prisioneiros conseguem fugir, ou cumprem integralmente suas respectivas penas, retornam à sociedade mais perigosos do que eram antes de serem condenados. Têm idéia fixa de “vingança” e aprendem, no cárcere, novas formas de delinqüir que não conheciam anteriormente, em contato com bandidos perigosos e irrecuperáveis. Pode-se dizer, sem medo de ser exagerado, ou injusto, que a penitenciária é a “universidade do crime”.
Concluo, dessas reflexões de Victor Hugo, no romance “Os Miseráveis”, e das observações pessoais que tenho feito a propósito, que as leis injustas, perversas e até iníquas produzem resultados diametralmente opostos aos supostamente pretendidos pelos legisladores. E as sentenças, mais ainda. Longe de reeducarem os infratores, tornam-nos delinqüentes contumazes (salvo raríssimas exceções, capazes de serem contadas nos dedos de uma só mão).
Em vez de humanizarem os condenados, os transformam em feras ferocíssimas e irrecuperáveis. Perdem-nos de vez. É o que Victor Hugo destaca neste trecho do seu consagrado romance: “É próprio das sentenças em que domina a impiedade, isto é, a brutalidade, transformar, pouco a pouco, um homem em animal, às vezes, até, em animal feroz. As sucessivas e obstinadas tentativas de evasão, bastariam para provar o estranho trabalho feito pela lei sobre a alma humana”.
Por causa destas, e de tantas outras reflexões, é que, insisto em afirmar que “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, deveria ser lido atentamente e, sobretudo, refletido, por todas as pessoas envolvidas na aplicação da justiça na sociedade, para que ela não permaneça, como é hoje, em boa parte dos casos, “mera sanção de injustiças”, como afirmou Anatole France.
A propósito de fugas, o autor diz o seguinte, sobre o comportamento de seu personagem central quando encarcerado: “Jean Valjean renovou as fugas, tão inúteis e loucas, toda vez que se apresentou ocasião propícia, sem pensar um pouquinho nas conseqüências, nem nas vãs experiências já feitas. Escapava impiedosamente, como o lobo que encontra a jaula aberta. O instinto lhe dizia; ‘Salve-se’. A razão lhe teria dito: ‘Fique!’. Mas, diante de tentação tão violenta, o raciocínio desaparecia, ficando somente o instinto. Era o animal que agia. Quando era novamente preso, os novos castigos que lhe infligiam só serviam para torná-lo mais sobressaltado”.
Deixo, para sua reflexão final, querido leitor, esta observação amarga e pessimista de Victor Hugo, mas que, infelizmente, reflete a absoluta verdade do que ainda ocorre no mundo, em termos de injustiças, sobretudo com os humildes e desassistidos, mas que é mister mudar, para o avanço da civilização: “A história é sempre a mesma. Essas pobres criaturas, carecendo de apoio, de guia, de abrigo, ficam ao léu, quem sabe até, indo cada uma para seu lado, mergulhada na fria bruma que absorve tantos destinos solitários, mornas trevas onde, na sombria marcha do gênero humano desaparecem sucessivamente tantas cabeças desafortunadas”.

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