Fatos subversivos
Pedro J. Bondaczuk
O jornalista é testemunha ocular da história. Relata os fatos, esmiuçando-os, detalhando-os e pormenorizando-os, tão logo acontecem. Caso se utilize dos meios eletrônicos de comunicação, não raro dá sua informação simultaneamente ao acontecimento. Dada a urgência da divulgação, todavia, raramente traz aos leitores as conseqüências do que aconteceu e que ele noticiou. E quando o faz, fá-lo com baixa margem de acerto.
Pudera! A rigor, esse nem mesmo é seu papel. Essa função cabe ao historiador que, ao contrário do jornalista, tem todo o tempo que quiser para colocar o fato ocorrido no devido contexto. Liga-o a outros, pesquisa documentos, interpreta-os e forma um quadro seqüencial coerente e preciso (nem sempre, é verdade) de determinado período da vida de um povo. O que perde em atualidade, ganha em profundidade.
Raros são os jornalistas que, simultaneamente, também têm a formação de historiadores. O britânico Timothy Garton Ash, de 56 anos (nasceu em 12 de julho de 1955) é exceção a essa quase regra. Autor de nove livros, o que faz ele próprio classifica de “história do presente”. Seu cenário preferencial é a Europa, continente que protagonizou, da última década do século XX para cá, extraordinárias e dramáticas mudanças políticas, econômicas e sociais. E também culturais, claro. Entre tais mudanças estão a queda do Muro de Berlim seguida, logo depois, da reunificação da Alemanha; o surpreendente colapso da União Soviética; o sangrento “estilhaçamento” da Iugoslávia, com as guerras da Bósnia e do Kosovo; as “revoluções de veludo” da Polônia e da antiga Checoslováquia e vai por aí afora.
Acabo de ler o mais recente livro de Garton Ash, “Os fatos são subversivos” (lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras), que ganhei de presente no Dia dos Pais da minha filha mais velha, a Tatiana. Trata-se de uma coletânea de ensaios, que nasceram, originalmente, como artigos e foram publicados como tal na ocasião dos acontecimentos abordados. Nem todos, todavia. Alguns são esboços de palestras e conferências proferidas em renomados centros culturais europeus.
A maioria dos acontecimentos tratados – notadamente os da última década do século XX – pelo autor, eu noticiei. Na ocasião eu era editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e me debruçava, não apenas como jornalista, mas como estudioso da realidade do meu tempo, sobre análises e mais análises de especialistas, para entender os antecedentes e os conseqüentes de cada um desses acontecimentos.
Escrevi artigos a propósito sem, claro (e compreensivelmente) a devida profundidade que os fatos requeriam. Por mais que tentasse, não conseguia contextualizar as profundas transformações que estavam em andamento na Europa. O livro de Timothy Garton Ash faz isso e num estilo claro, preciso e gostoso de se ler.
“Os fatos são subversivos”, porém, não trata somente de política. Faz incursões sobre o panorama cultural, notadamente o literário, no continente europeu. Ninguém é mais habilitado do que o autor para “virar pelo avesso” a Europa contemporânea e explicar por que e como as coisas aconteceram e no que isso tende a resultar. Tudo o que escreveu é matéria-prima de uma de suas tantas atividades: o magistério. Garton Ash é professor de Estudos Europeus na ultratradicional Universidade de Oxford.
Trata-se de um intelectual daqueles que classifico de “homens dos sete instrumentos”, pela multiplicidade de funções que exerce. Fico me perguntando: “onde encontra tanto tempo para fazer tudo isso e, principalmente, tão bem?”. Além de lecionar em Oxford, ele é diretor do Centro de Estudos Europeus no Saint Anthony’s College. Até aí, tudo bem
Mas Garton Ash é presença constante na imprensa, ora com artigos, ora com extensos ensaios. Volta e meia, é convidado para proferir palestras e conferências em diversas partes do mundo. E esbanja talento, conhecimento e erudição. Conta, há já alguns anos, com uma coluna semanal no tradicional “Guardian”, de Londres, com excelente distribuição fora da Grã-Bretanha. Publica, regularmente, no “New York Review of Books” (daí estar tão atualizado com o panorama literário nos principais centros culturais do mundo).
Mas não é só. Esse misto de jornalista, historiador, professor e conferencista escreve, também, para o “The New York Times”, “Washington Post”, “Prospect”, “The Wall Street Journal” e “The Globe and Mail”. Ufa! Reitero: haja tempo e fôlego para tanta atividade!
Garton Ash detecta crise nos vários veículos de comunicação, em virtude dos elevados custos na coleta racional e precisa das notícias, o que, no seu entender, tende a comprometer a qualidade do jornalismo. Observa: “Com a mudança da economia da coleta de fatos, encontram-se novos modelos de receita para muitas áreas do jornalismo –– esportes, negócios, diversão, interesses especiais de todo tipo ––, mas os editores ainda tentam descobrir como sustentar o caro negócio do noticiário internacional e do jornalismo investigativo. Enquanto isso, as sucursais no estrangeiro de respeitados jornais estão fechando como luzes de escritório que um zelador apaga em sua ronda noturna”. E não é o que acontece?
Sobre o futuro da atividade jornalística, Garton Ash observa: “Eu trabalho tanto em universidades como em jornais. Dentro de dez anos, as universidades ainda serão universidades. Quem sabe o que será dos jornais?” Pois é, quem sabe? Enquanto isso, os fatos continuarão ocorrendo, sem aviso prévio, mudando, ora para melhor, ora para muito pior, a realidade dos povos e, por extensão, do mundo. Ou seja, seguirão com o caráter que sempre tiveram: sendo, sobretudo, “subversivos”.
Observação interessante a propósito é a feita pelo jornalista, escritor e professor titular da Universidade do Rio de Janeiro, Muniz Sodré. Em um excelente artigo publicado em agosto de 2011 no “Observatório de Imprensa”, intitulado “Serão mesmo os fatos subversivos?”, afirmou: “Esse tipo de preocupação (o da consciência cívica com a história do presente) ou de cuidado ético aplica-se não apenas à hipótese da mentira deliberada, mas à realidade da pulverização do fato no circuito das redes sociais e do ‘jornalismo de internet’ de um modo geral, sob o influxo da ficcionalização da realidade. Se antes, em plena era do impresso, predominava em publicações semanais de luxo uma espécie de ‘jornalismo de butique’ em que os fatos eram travestidos de retórica literária, hoje se consomem ‘átomos’ de fato, que são despolitizantes, porque recalcam a argumentação coerente dos problemas sociais e impedem o aparecimento de uma narrativa completa sobre a vida pública, em favor do boato e do mexerico privado”. E não é o que ocorre?
Acompanhe-me pelo twitter: @bondaczuk
Pedro J. Bondaczuk
O jornalista é testemunha ocular da história. Relata os fatos, esmiuçando-os, detalhando-os e pormenorizando-os, tão logo acontecem. Caso se utilize dos meios eletrônicos de comunicação, não raro dá sua informação simultaneamente ao acontecimento. Dada a urgência da divulgação, todavia, raramente traz aos leitores as conseqüências do que aconteceu e que ele noticiou. E quando o faz, fá-lo com baixa margem de acerto.
Pudera! A rigor, esse nem mesmo é seu papel. Essa função cabe ao historiador que, ao contrário do jornalista, tem todo o tempo que quiser para colocar o fato ocorrido no devido contexto. Liga-o a outros, pesquisa documentos, interpreta-os e forma um quadro seqüencial coerente e preciso (nem sempre, é verdade) de determinado período da vida de um povo. O que perde em atualidade, ganha em profundidade.
Raros são os jornalistas que, simultaneamente, também têm a formação de historiadores. O britânico Timothy Garton Ash, de 56 anos (nasceu em 12 de julho de 1955) é exceção a essa quase regra. Autor de nove livros, o que faz ele próprio classifica de “história do presente”. Seu cenário preferencial é a Europa, continente que protagonizou, da última década do século XX para cá, extraordinárias e dramáticas mudanças políticas, econômicas e sociais. E também culturais, claro. Entre tais mudanças estão a queda do Muro de Berlim seguida, logo depois, da reunificação da Alemanha; o surpreendente colapso da União Soviética; o sangrento “estilhaçamento” da Iugoslávia, com as guerras da Bósnia e do Kosovo; as “revoluções de veludo” da Polônia e da antiga Checoslováquia e vai por aí afora.
Acabo de ler o mais recente livro de Garton Ash, “Os fatos são subversivos” (lançado recentemente no Brasil pela Companhia das Letras), que ganhei de presente no Dia dos Pais da minha filha mais velha, a Tatiana. Trata-se de uma coletânea de ensaios, que nasceram, originalmente, como artigos e foram publicados como tal na ocasião dos acontecimentos abordados. Nem todos, todavia. Alguns são esboços de palestras e conferências proferidas em renomados centros culturais europeus.
A maioria dos acontecimentos tratados – notadamente os da última década do século XX – pelo autor, eu noticiei. Na ocasião eu era editor de política internacional do Correio Popular de Campinas e me debruçava, não apenas como jornalista, mas como estudioso da realidade do meu tempo, sobre análises e mais análises de especialistas, para entender os antecedentes e os conseqüentes de cada um desses acontecimentos.
Escrevi artigos a propósito sem, claro (e compreensivelmente) a devida profundidade que os fatos requeriam. Por mais que tentasse, não conseguia contextualizar as profundas transformações que estavam em andamento na Europa. O livro de Timothy Garton Ash faz isso e num estilo claro, preciso e gostoso de se ler.
“Os fatos são subversivos”, porém, não trata somente de política. Faz incursões sobre o panorama cultural, notadamente o literário, no continente europeu. Ninguém é mais habilitado do que o autor para “virar pelo avesso” a Europa contemporânea e explicar por que e como as coisas aconteceram e no que isso tende a resultar. Tudo o que escreveu é matéria-prima de uma de suas tantas atividades: o magistério. Garton Ash é professor de Estudos Europeus na ultratradicional Universidade de Oxford.
Trata-se de um intelectual daqueles que classifico de “homens dos sete instrumentos”, pela multiplicidade de funções que exerce. Fico me perguntando: “onde encontra tanto tempo para fazer tudo isso e, principalmente, tão bem?”. Além de lecionar em Oxford, ele é diretor do Centro de Estudos Europeus no Saint Anthony’s College. Até aí, tudo bem
Mas Garton Ash é presença constante na imprensa, ora com artigos, ora com extensos ensaios. Volta e meia, é convidado para proferir palestras e conferências em diversas partes do mundo. E esbanja talento, conhecimento e erudição. Conta, há já alguns anos, com uma coluna semanal no tradicional “Guardian”, de Londres, com excelente distribuição fora da Grã-Bretanha. Publica, regularmente, no “New York Review of Books” (daí estar tão atualizado com o panorama literário nos principais centros culturais do mundo).
Mas não é só. Esse misto de jornalista, historiador, professor e conferencista escreve, também, para o “The New York Times”, “Washington Post”, “Prospect”, “The Wall Street Journal” e “The Globe and Mail”. Ufa! Reitero: haja tempo e fôlego para tanta atividade!
Garton Ash detecta crise nos vários veículos de comunicação, em virtude dos elevados custos na coleta racional e precisa das notícias, o que, no seu entender, tende a comprometer a qualidade do jornalismo. Observa: “Com a mudança da economia da coleta de fatos, encontram-se novos modelos de receita para muitas áreas do jornalismo –– esportes, negócios, diversão, interesses especiais de todo tipo ––, mas os editores ainda tentam descobrir como sustentar o caro negócio do noticiário internacional e do jornalismo investigativo. Enquanto isso, as sucursais no estrangeiro de respeitados jornais estão fechando como luzes de escritório que um zelador apaga em sua ronda noturna”. E não é o que acontece?
Sobre o futuro da atividade jornalística, Garton Ash observa: “Eu trabalho tanto em universidades como em jornais. Dentro de dez anos, as universidades ainda serão universidades. Quem sabe o que será dos jornais?” Pois é, quem sabe? Enquanto isso, os fatos continuarão ocorrendo, sem aviso prévio, mudando, ora para melhor, ora para muito pior, a realidade dos povos e, por extensão, do mundo. Ou seja, seguirão com o caráter que sempre tiveram: sendo, sobretudo, “subversivos”.
Observação interessante a propósito é a feita pelo jornalista, escritor e professor titular da Universidade do Rio de Janeiro, Muniz Sodré. Em um excelente artigo publicado em agosto de 2011 no “Observatório de Imprensa”, intitulado “Serão mesmo os fatos subversivos?”, afirmou: “Esse tipo de preocupação (o da consciência cívica com a história do presente) ou de cuidado ético aplica-se não apenas à hipótese da mentira deliberada, mas à realidade da pulverização do fato no circuito das redes sociais e do ‘jornalismo de internet’ de um modo geral, sob o influxo da ficcionalização da realidade. Se antes, em plena era do impresso, predominava em publicações semanais de luxo uma espécie de ‘jornalismo de butique’ em que os fatos eram travestidos de retórica literária, hoje se consomem ‘átomos’ de fato, que são despolitizantes, porque recalcam a argumentação coerente dos problemas sociais e impedem o aparecimento de uma narrativa completa sobre a vida pública, em favor do boato e do mexerico privado”. E não é o que ocorre?
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