Erudito e eclético
Pedro J. Bondaczuk
Os escritores muito eruditos, com conhecimento a fundo de determinadas disciplinas, tendem, via de regra, a pecar pela rigidez. Apegam-se a estilos e temas de sua especialidade e se mostram imperitos, quando não incapazes, de flanar por outras áreas do conhecimento, que não as suas. Pecam, portanto, por falta de ecletismo. Esse não é o caso, todavia, do sul-africano J. M. Coetzee, residente, atualmente, na cidade australiana de Adelaide, onde leciona na universidade local.
Trata-se de um homem de letras que chegou ao topo da atividade que escolheu: a literatura. Consagrou-se, notadamente, como romancista. Seu mais recente best-seller foi “Verão”, que conquistou crítica e público nos principais centros culturais do mundo. Ademais, não precisa provar mais nada para ninguém. Afinal, foi reconhecido, mundialmente, ao obter a mais reputada e cobiçada premiação literária, o Nobel de Literatura de 2003. Foi o quarto escritor nascido na África (e o segundo da África do Sul, a que o precedeu foi Nadine Gordimer, em 1991) a lograr essa façanha.
Antes, já havia protagonizado outro feito quase que do mesmo porte. Havia ganho o disputadíssimo “Booker Prize”, dos Estados Unidos, e em duas oportunidades. O primeiro prêmio foi pelo livro “Life & times of Michael K”, em 1983. E o segundo, 16 anos depois, em 1999, por “Disgrace”. Foi o primeiro escritor a conquistar esse prêmio por duas vezes. Como se vê, não precisa provar mais nada para ninguém.
Interessante é a formação acadêmica de Coetzee. Algumas de suas qualificações não têm nada, absolutamente nada a ver com literatura. Bacharelou-se, por exemplo, em matemática. Entre 1962 e 1965, viveu uma temporada na Inglaterra, quando trabalhou como programador de computadores. Porém, paralelo a essa formação técnica, fez, também, estudos específicos, que o capacitaram a caminhar com segurança e desenvoltura pelo mundo das letras. Para tanto, além de um bacharelato em língua inglesa, doutorou-se, na Universidade do Texas, em Austin, em lingüística dos complexos idiomas de raízes germânicas. Como acadêmico, portanto, o cara é uma fera!
Sua brilhante carreira literária, que desembocou no Nobel de Literatura de 2003, começou em 1974, com o livro “Dusklands”. A ele, seguiram-se outros 20, entre os quais o recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras, intitulado “Mecanismos internos”. Muitos dos livros de Coetzee já chegaram ao Brasil e podem ser encontrados nas melhores livrarias. São os casos, por exemplo, de “À espera dos bárbaros”, “O cio da terra. Vida e tempo de Michael K”, “A idade do ferro”, “O mestre de Petersburgo”, “Cenas de uma vida”, “Desonra”, “Homem lento” e “Diário de um ano ruim”, entre outros.
“Mecanismos internos” não foi um livro planejado para sê-lo. Coetzee fez, em relação a ele, o que muitos escritores, que são colunistas de jornais e revistas (literários ou não) fazem. Ou seja, reúnem as melhores colunas, que tenham alguma relação umas com as outras, para conferir uma certa unidade temática ao conjunto, e publicam-nas em um e, às vezes, em vários volumes.
Os 21 textos que compõem esse livro foram publicados na prestigiosa “New York Review of Books”, o suplemento literário do jornal “The New York Times”. Quem se baseia, apenas, no currículo de Coetzee, sem se dar o trabalho de ler essa obra, pode ter a impressão (falsa) de se tratar de textos complicados, carregados de erudição, de leitura monótona, para não dizer, chata. Não ocorre nada disso. Aliás, pelo contrário.
O autor, valendo-se de sua longa experiência de professor – função que ainda exerce, agora na Universidade de Adelaide – esbanja didatismo e clareza, sem perder sua melhor característica: a capacidade crítica e o talento de arguto observador, que enxerga determinadas nuances (positivas e/ou negativas) nos textos dos escritores cujas obras passam pelo seu crivo. É, portanto, não somente o romancista consagrado, o ganhador de um Nobel de Literatura, mas também um ensaísta de mão cheia.
Nos 21 ensaios que compõem “Mecanismos internos”, Coetzee avalia a obra principalmente de seus precursores e, em especial, dos contemporâneos, o que lhe dá foros de atualidade. Entre estes, destaco suas análises sobre Walter Benjamim, Nadine Gordimer e Robert Musil. O livro conta com a tradução de Sérgio Flaksman. Recomendo-o aos que amam literatura e que se esmeram em conhecer sua importância e alguns dos seus “segredinhos”.
Um dos aspectos a serem destacados, em “Mecanismos internos”, é a análise que Coetzee faz das traduções. Dá tanta importância a essa questão, que lhe dedica um terço dos textos do livro. E ela é importante mesmo. Ademais, o autor tem capacitação plena para opinar, com propriedade, a respeito. Afinal, entre suas tantas habilidades, está a de tradutor, função que exerce com naturalidade por dominar, com absoluta fluência, três idiomas: inglês, alemão e holandês.
A vantagem da sua erudição mostra-se por inteiro na minúcia de suas pesquisas e na coerência de suas análises. Concordo com Gabriel Innocentini que, em sua análise de “Mecanismos internos”, no site da Revista Bula (WWW.revistabula.com), destaca: “Coetzee lê atentamente com o leitor, levantando hipóteses, investigando por que o escritor em questão fez determinadas escolhas. Primeiro, compreender; depois, julgar. Somente depois de entender de que forma tal efeito foi obtido. Coetzee avalia se uma opção diferente não traria melhores resultados”. Esse é um erudito que não se deixa “fossilizar”. E que, sobretudo, esbanja ecletismo.
Pedro J. Bondaczuk
Os escritores muito eruditos, com conhecimento a fundo de determinadas disciplinas, tendem, via de regra, a pecar pela rigidez. Apegam-se a estilos e temas de sua especialidade e se mostram imperitos, quando não incapazes, de flanar por outras áreas do conhecimento, que não as suas. Pecam, portanto, por falta de ecletismo. Esse não é o caso, todavia, do sul-africano J. M. Coetzee, residente, atualmente, na cidade australiana de Adelaide, onde leciona na universidade local.
Trata-se de um homem de letras que chegou ao topo da atividade que escolheu: a literatura. Consagrou-se, notadamente, como romancista. Seu mais recente best-seller foi “Verão”, que conquistou crítica e público nos principais centros culturais do mundo. Ademais, não precisa provar mais nada para ninguém. Afinal, foi reconhecido, mundialmente, ao obter a mais reputada e cobiçada premiação literária, o Nobel de Literatura de 2003. Foi o quarto escritor nascido na África (e o segundo da África do Sul, a que o precedeu foi Nadine Gordimer, em 1991) a lograr essa façanha.
Antes, já havia protagonizado outro feito quase que do mesmo porte. Havia ganho o disputadíssimo “Booker Prize”, dos Estados Unidos, e em duas oportunidades. O primeiro prêmio foi pelo livro “Life & times of Michael K”, em 1983. E o segundo, 16 anos depois, em 1999, por “Disgrace”. Foi o primeiro escritor a conquistar esse prêmio por duas vezes. Como se vê, não precisa provar mais nada para ninguém.
Interessante é a formação acadêmica de Coetzee. Algumas de suas qualificações não têm nada, absolutamente nada a ver com literatura. Bacharelou-se, por exemplo, em matemática. Entre 1962 e 1965, viveu uma temporada na Inglaterra, quando trabalhou como programador de computadores. Porém, paralelo a essa formação técnica, fez, também, estudos específicos, que o capacitaram a caminhar com segurança e desenvoltura pelo mundo das letras. Para tanto, além de um bacharelato em língua inglesa, doutorou-se, na Universidade do Texas, em Austin, em lingüística dos complexos idiomas de raízes germânicas. Como acadêmico, portanto, o cara é uma fera!
Sua brilhante carreira literária, que desembocou no Nobel de Literatura de 2003, começou em 1974, com o livro “Dusklands”. A ele, seguiram-se outros 20, entre os quais o recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras, intitulado “Mecanismos internos”. Muitos dos livros de Coetzee já chegaram ao Brasil e podem ser encontrados nas melhores livrarias. São os casos, por exemplo, de “À espera dos bárbaros”, “O cio da terra. Vida e tempo de Michael K”, “A idade do ferro”, “O mestre de Petersburgo”, “Cenas de uma vida”, “Desonra”, “Homem lento” e “Diário de um ano ruim”, entre outros.
“Mecanismos internos” não foi um livro planejado para sê-lo. Coetzee fez, em relação a ele, o que muitos escritores, que são colunistas de jornais e revistas (literários ou não) fazem. Ou seja, reúnem as melhores colunas, que tenham alguma relação umas com as outras, para conferir uma certa unidade temática ao conjunto, e publicam-nas em um e, às vezes, em vários volumes.
Os 21 textos que compõem esse livro foram publicados na prestigiosa “New York Review of Books”, o suplemento literário do jornal “The New York Times”. Quem se baseia, apenas, no currículo de Coetzee, sem se dar o trabalho de ler essa obra, pode ter a impressão (falsa) de se tratar de textos complicados, carregados de erudição, de leitura monótona, para não dizer, chata. Não ocorre nada disso. Aliás, pelo contrário.
O autor, valendo-se de sua longa experiência de professor – função que ainda exerce, agora na Universidade de Adelaide – esbanja didatismo e clareza, sem perder sua melhor característica: a capacidade crítica e o talento de arguto observador, que enxerga determinadas nuances (positivas e/ou negativas) nos textos dos escritores cujas obras passam pelo seu crivo. É, portanto, não somente o romancista consagrado, o ganhador de um Nobel de Literatura, mas também um ensaísta de mão cheia.
Nos 21 ensaios que compõem “Mecanismos internos”, Coetzee avalia a obra principalmente de seus precursores e, em especial, dos contemporâneos, o que lhe dá foros de atualidade. Entre estes, destaco suas análises sobre Walter Benjamim, Nadine Gordimer e Robert Musil. O livro conta com a tradução de Sérgio Flaksman. Recomendo-o aos que amam literatura e que se esmeram em conhecer sua importância e alguns dos seus “segredinhos”.
Um dos aspectos a serem destacados, em “Mecanismos internos”, é a análise que Coetzee faz das traduções. Dá tanta importância a essa questão, que lhe dedica um terço dos textos do livro. E ela é importante mesmo. Ademais, o autor tem capacitação plena para opinar, com propriedade, a respeito. Afinal, entre suas tantas habilidades, está a de tradutor, função que exerce com naturalidade por dominar, com absoluta fluência, três idiomas: inglês, alemão e holandês.
A vantagem da sua erudição mostra-se por inteiro na minúcia de suas pesquisas e na coerência de suas análises. Concordo com Gabriel Innocentini que, em sua análise de “Mecanismos internos”, no site da Revista Bula (WWW.revistabula.com), destaca: “Coetzee lê atentamente com o leitor, levantando hipóteses, investigando por que o escritor em questão fez determinadas escolhas. Primeiro, compreender; depois, julgar. Somente depois de entender de que forma tal efeito foi obtido. Coetzee avalia se uma opção diferente não traria melhores resultados”. Esse é um erudito que não se deixa “fossilizar”. E que, sobretudo, esbanja ecletismo.
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